sexta-feira, 5 de junho de 2020

O choro da Cabaça


Certa vez eu estava no cabeleireiro e, enquanto meu cabelo era cortado,  ouvi a conversa de  um homem dando uma receita de um medicamento natural, a  uma  pessoa que ali estava. Não me recordo para que servia aquele medicamento,  mas me chamou atenção a sua explicação sobre  o que acontecia enquanto se produzia o remédio. Ele  dizia que era uma substância vinda  das lágrimas da cabaça e explicava como fazer. Deveria se cortar uma cabaça verde,  ao meio, formando  uma espécie de duas cuias e em seguida  levar  uma das partes ao forno,  ou colocá-la em cima de brasas.  Ele  dizia que enquanto o fogo aquece,  a cabaça começa a chorar e então se deve recolher  aquelas  lágrimas,   pois elas são um excelente medicamento. Pena que não me recordo quais doenças o medicamento curava. Mas, me chamou a atenção o jeito poético  do homem referindo-se ao  choro silencioso produzindo as lágrimas da cabaça,  a qual ao ser colocada no fogo sentia  dor e começava a lacrimejar. Suas lágrimas se tornavam o remédio vindo do sofrimento.
Pensei no choro de tantas árvores violentadas na natureza que derramam lágrimas e nem sempre essas são notadas. O instrumento cortante impiedosamente é acionado arrancando pedaços da “carne” das árvores. Suas “veias” são partidas e a vida se esvai.
Pensei nas lágrimas, chamadas orvalho, que na madrugada são derramadas sobre a relva. Talvez seja o choro da natureza pelos sofrimentos vividos durante o dia. Parece que à noite a dor dói mais e os gritos sofridos  se perdem na escuridão. Nos hospitais, à noite, se ouvem mais  gemidos de dor do que durante o dia.
Pensei nos inúmeros cortes existenciais na vida de todas as pessoas que faz lágrimas brotarem e   essas são como remédios que escorrem pelo rosto trazendo alívio para dor.  O choro se torna uma espécie de bálsamo natural em cada ser vivo.
O choro faz parte da vida. Normalmente nascemos chorando, mas nem sempre morremos chorando. Existem relatos de pessoas que morreram sorrindo. Muitas vezes  o choro é solitário, mas o choro chorado junto de uma outra pessoa tem uma força maior. É sempre bom quando encontramos a solidariedade de alguém que chora conosco. Lembro-me quando meu pai faleceu.  Eu acompanhei a sua agonia e sua morte, no hospital. Fui eu quem deu a notícia aos  meus irmãos e tomei as primeiras providências para o seu sepultamento. Depois que se iniciou velório eu ali permanecia ao lado do seu corpo,  mas até então nenhuma lágrima tinha vindo.  Eu estava meio anestesiado, vivendo o espanto da morte. Um pouco mais tarde chegou um sacerdote amigo, o qual esteve ali por um tempo, e quando ele foi se despedir  eu quis lhe agradecer  a  presença e naquela hora minha voz embargou e um choro estava começando, mas ele saiu imediatamente. Ele   não quis parar para ver e sentir o meu choro. Como me fez falta aquela parada de um irmão amigo, para me ver chorar. Eu era como uma cabaça partida colocada sobre a brasa e minhas lágrimas estavam começando a escorrer, devido a minha dor interior. Aquela era uma hora em que eu precisava chorar e seria muito bom que alguém chorasse comigo, ou pelo menos sentisse as minhas lágrimas. É preciso aprender a chorar junto. São muitas pessoas carentes de choro. Nós Bispos temos muitos motivos para chorar, mas parece que temos vergonha e precisamos demonstrar  firmeza e viver como se não tivéssemos sentimentos. Isso nos faz mal.
 A natureza tem suas alegrias e seus lamentos. Quando uma dor grande toma conta de uma pessoa, parece que a natureza sofre junto. É como na paixão de Jesus: “Houve treva em toda terra” (Mt 27,45). Há uma integração dos elementos da natureza. “Tudo está interligado”.
Quantas vezes não queremos, mas temos que chorar juntos devido a nossa missão. Lembremos o exemplo da cebola. Ela chora quando é cortada e normalmente choramos juntos com ela,  mas nem por isso deixamos de cortá-la. Existem aquelas situações difíceis em que temos que fazer um corte,  sabemos que a pessoa está sofrendo, até  choramos juntos, mas o corte é necessário. Temos que fazê-lo. São especialmente aquelas vezes em que temos que dizer não, quando gostaríamos de dizer sim.
Fico pensando como aquele naturalista, que ensinava o medicamento com as lágrimas da cabaça, despertou-me a atenção para tantos outros ensinamentos e remédios que ele nem se quer imaginava que estava ajudando a descobrir. Aprendi que o  choro da cabaça é medicinal.
O choro de Jesus foi medicinal para Marta e Maria sufocadas  com a morte de Lázaro. Não foi um choro de desespero, mas de solidariedade que iluminou a realidade com o dom da fé. “Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá. Crês nisso?” Disse ela: “Sim Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que vem ao mundo” (Jo 11, 24-27).
Neste tempo da Pandemia do Coronavírus muitas pessoas estão precisando de um ombro amigo para apoiar e poder compartilhar suas lágrimas. Uma tristeza está encobrindo a terra. A solidariedade pode trazer alívio e esperança neste momento de dor. Como a parte da cabaça colocada sobre as brasas assim se encontra a humanidade. Deus nos dá o dom de chorar juntos, nos consolar e nos curar com as lágrimas. Nossa esperança é que as lágrimas da dor se transformem em lágrimas da alegria. Também o choro da alegria quando chorado junto ganha mais vida. Neste tempo de Pandemia tenhamos a certeza que Deus está chorando conosco e “Ele é a luz que está não no fim, mas no meio do túnel” (Carlos Mesters).  Deus não entra em desespero, mas nos ajuda a transformar nosso desespero em esperança. Tudo vai passar e a vitória vai chegar. Para alcançar a vitória se faz necessário dizer alguns nãos. É necessário fazer cortes que geram dor, fazer renúncias que distanciam, mas  tudo seja feito para o bem, não apenas nosso, mas de todos. Já podemos sentir os sinais do amanhã. As crianças vêm ao mundo no meio da dor da mãe parturiente, mas sempre trazem alegria. Deus nos prepara para muitas alegrias.

Dom Messias dos Reis Silveira
Bispo de Teófilo Otoni

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