O rei da Bazófia é um homem
naturalmente bom. Alguns lhe imputam certa rudeza, é verdade, mas não a
deploram e sim a exaltam como marca de probidade inabalável e não conspurcada
pela ferrugem política. Puro de sentimentos, chega a ser ingênuo. Costuma caminhar
pelas ruas sem os seus seguranças, ato visto com reprovação por alguns
ministros. “Minha segurança é o meu povo”, contrapõe o rei valente. E lá se vai
o nosso herói, marchando confiante e folgazão pelas cercanias do castelo.
Enquanto caminha, o mandatário vai arrebanhando um séquito de transeuntes que
não se furta a idolatrá-lo, abraçá-lo, fotografá-lo. Em arroubos patrióticos,
alguns proclamam: “Estamos com o senhor, Majestade!” “O senhor é o nosso rei!”
O homem do povo sorri e acena, com as mãos fazendo “V”.
Na última quinta-feira, o rei
novamente empreendeu um passeio matinal e, ao sair de uma padaria, envolveu-se
em evento desagradável que foi largamente divulgado (e supervalorizado, diga-se
de passagem) por todos os jornais da Bazófia. Para contar-lhes o episódio não
me valho das páginas tendenciosas dos periódicos, nem tampouco dos meus
próprios olhos, mas afianço a veracidade dos fatos por tê-los ouvido de fonte
ilibada (a qual prefiro manter em sigilo).
Antes de relatar os
acontecimentos, cumpre recordar que a Bazófia passa por um momento peculiar com
a epidemia da peste vermelha, moléstia infecciosa que assola o reino e já lhe
cobra algumas vidas (se bem que a maioria delas seja de idosos improdutivos e
cidadãos com saúde frágil). Acostumado às adversidades, o bazofiano forte
não se curvaria a qualquer microbiozinho xexelento. O certo é que o povo,
gregário e de índole inquieta, via-se tolhido em seus hábitos mais sagrados,
como as tertúlias etílicas, os passeios em bando e as folganças dominicais. Os
patrícios sentiam-se incrédulos e confusos. Alguns se resignavam e se
recolhiam, outros praguejavam na surdina. Os indomáveis se rebelavam contra a
imposição de usar máscara e manter o isolamento. Viviam-se dias turbulentos no
reino.
Mas voltemos ao bizarro
incidente. Afeito aos hábitos simples e prosaicos, o rei entrara na padaria
para tomar um café e desfrutar da intimidade do povo. Em pé defronte ao balcão,
entre dentadas num sonho macio, o rei sem máscara distribuía gracejos e
conversava folgadamente. Falava-se de tudo (ou quase tudo). Futebol. O preço
dos insumos. A lei de proteção ao empresariado. Os novos direitos do cidadão de
bem. O rei apregoava os novos rumos da Bazófia, que enfim se endireitara. Era
chegado o tempo da moralidade, da austeridade, do rigor fiscal etc. e tal.
Funcionários e fregueses ouviam devotamente, entre fotos, risos e abraços. Em
pouco tempo, uma pequena multidão aglomerou-se no local, formando-se um
burburinho nas adjacências. Porém um frêmito indesejável abalou aquele momento
de patente espontaneidade e empatia mútua.
Eis que o Diário da Bazófia
escalara o repórter Tiago Tupinambá para cobrir as aparições do rei em público.
Tupinambá era um jornalista experiente, porém com a pecha de ser questionador e
petulante. O encontro não parecia ser muito auspicioso. Na calçada abarrotada
de gente, o rei dirigia-se de volta ao castelo quando o repórter o interpelou:
— Majestade, o que o que vós
tendes a dizer sobre o aumento de mortes pela peste vermelha nas últimas
semanas?
— Cara chato! De novo com isso!
Que assunto mais sem propósito para uma manhã tão harmônica — protestou uma
senhora, após um muxoxo.
O rei contestou:
— Olha aqui, ô rapaz. Essas
mortes aí são normais, ok? Coisas da vida. É o destino de todo mundo. Fazer o
quê? Eu vou morrer. Você também vai. Está tudo dentro do previsto.
— Mas foram mais de 1000 mortes
apenas num dia — retrucou o repórter. — Vossa Majestade acha isso normal?
— Olha só — responde o rei, já
manifestando alguma irritação, você é índio? Tem uma cara de índio danada. Mas
— pensativo — essa questão aí da peste vermelha, ela já está controlada aqui na
Bazófia, ok? Inclusive, essas mortes aí nem foram todas pela peste, como está
propagando esse seu jornaleco. Agora todo mundo que morre é pela tal peste?
Vocês, da imprensa, deturpam tudo.
— Boa, Majestade! É isso mesmo,
apoiado! — Acrescentou um senhor de cabelos grisalhos, acenando com a cabeça e
batendo palmas freneticamente.
O arreliento repórter insistia em
arguir o monarca: — Majestade, não usais a máscara, o que é regulamentado por
lei, e não pareceis vos preocupar com essa aglomeração de pessoas. Vosso
comportamento não representa um mau exemplo para a população?
— Que absurdo! — comentou uma das
funcionárias, com a máscara no pescoço. — Isso é pergunta que se faça para um
rei? Não se tem mais respeito nesse reino. Onde já se viu?
— Estão vendo aí? A imprensa
insiste em me atacar — interpõe o rei. — Eles não sabem trabalhar e me vêm com
essas perguntas idiotas. São uns pulhas! Querem tumultuar o meu reinado. Eu não
caio nessa! Esse tipo de pergunta não merece resposta, ok? Nesse momento, o
pernicioso repórter se aproxima do rei e o questiona insistentemente: —
Majestade, os hospitais estão superlotados de doentes. O reino não sabe mais
onde enterrar tantos mortos. Não vos importais? Não vos compadeceis com a dor
das pessoas?
Diante de tamanha afronta, o rei,
que não tem sangue de barata, reage desferindo uma violenta bofetada no rosto
do repórter, que se desequilibra e cai.
— Cabra macho! — Dispara um
sujeito baixinho, com camisa da CBF (Confederação Bazofiana de Futebol) — Muito
bem, Majestade. É isso mesmo! Não adianta argumentar com esses vermes
comunistas. Parte logo pra porrada, que resolve. É assim que se faz!
A ação enérgica do rei gerou uma
agitação no meio da turba. Muitos o aplaudiam, outros se exasperavam e gritavam
euforicamente: “Viva o rei! Ele é o nosso rei! Deus salve o nosso rei!”
Ferido nos seus brios, o
pernóstico repórter levanta-se da sarjeta e volta à carga. O guerreiro
tupinambá, visivelmente irado, encara o rei com o dedo em riste: — Vossa
Majestade não respeita a imprensa. Só porque é rei não tem o direito de me
agredir dessa maneira. É um déspota! Um antidemocrático! Um ditador!
O impetuoso rei não suportaria
tamanho acinte. Saca, de dentro do colete, uma pequena Mauser e dá 3 tiros, à
queima-roupa, na cabeça do insolente, que tomba como um tronco podre e se
estatela no chão. Do crânio crivado de balas, começa a minar um sangue espesso
que vai se espalhando e se misturando com a terra da rua.
Inebriada de orgulho, a falange
bazofiana ali presente frui aquele inesperado e delicioso frenesi. Que arrojo!
Que destemor! Seguem-se palmas, vivas, urros e gritos roucos. — Ele é o nosso
rei! Deus salve o nosso rei! — Refeito do pequeno stress, o monarca calmamente
guarda a Mauser, arruma o cabelo pro lado, salta por cima do cadáver e toma o
rumo do castelo, ovacionado pela multidão.
O dono da padaria chega na porta
e grita: — Ô, Valdemar! Tira esse cara do meio da rua. O infeliz incomoda até
depois de morto. Não vê que caiu na contramão e está atrapalhando o trânsito.
Por Luciano Alberto de Castro
Publicado em: https://www.revistabula.com/34916-patacoadas-no-reino-da-bazofia/ acesso em 24/08/2020,
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