Recentemente correu o noticiário a
informação de que houve, em plena pandemia do coronavírus, aumento da fortuna dos
brasileiros que possuem mais de um bilhão em patrimônio. A mesma sorte dos
ditos bilionários foi verificada nos demais países da América Latina, o que
confirma o cenário de meses anteriores em países como os
Recentemente correu o noticiário a
informação de que houve, em plena pandemia do coronavírus, aumento da fortuna dos
brasileiros que possuem mais de um bilhão em patrimônio. A mesma sorte dos
ditos bilionários foi verificada nos demais países da América Latina, o que
confirma o cenário de meses anteriores em países como os Estados Unidos. Os
dados são da Forbes, revista de negócios que publica anualmente a lista de
bilionários no mundo, classificados de acordo com suas fortunas. Sim. Existe
uma revista especializada no assunto. O que já é notável.
Soube da notícia enquanto ouvia
um programa matinal de rádio. Como de costume, as manchetes vão se sobrepondo
de tal maneira que assuntos de enorme relevância e outros corriqueiros formem um
mosaico. Assim é também o noticiário televisivo. No meu caso, o que veio depois
da notícia bombástica do aumento das fortunas dos bilionários foi a previsão do
tempo...
Naturalização. Esse é o termo. É
comum sua aplicação aos processos sociais que de tanto se repetirem passam a
ser vistos como naturais. Então, assim como a chuva que molha, o vento que
sopra e a fumaça que sobe também aspectos da vida social como a desigualdade
econômica passam a ser concebidos como inevitáveis. Um bom indicativo de que
tal processo se tenha dado está no senso comum, ou seja, aquela visão geral que
vai se cristalizando no cotidiano, nas conversas e nas mensagens trocadas. A
formulação varia, mas o seu conteúdo básico é este: “É assim mesmo!”. Por
vezes, há um reforço histórico no argumento: “Desde que o mundo é mundo foi
assim!”.
Entre as dezenas de poemas
recitados pelo grande Antonio Abujamra no programa Provocação, não me esqueço
de um que me marcou de forma especial. Trata-se de “Eu sei, mas não devia”, de
Marina Colasanti. Convido o leitor, terminada a leitura desta crônica, pela
qual desde já agradeço imensamente, a fazer uma busca rápida aí no seu
navegador. Digite: “Abujamra a gente se acostuma vídeo”. O poema é brilhante
para ser lido, mas quando recitado com aquela propriedade fica soberbo.
Num chamado àquilo que poderíamos
nomear de “desnaturalização”, o poema dos desloca do senso comum para o campo
da reflexão. Não sei como é para você que já o leu ou você que o lerá daqui a
pouco, mas a minha experiência é sempre inquietante – ouvindo-o pelo Abujamra
eu diria que é assustadora. Volto a ele com sentimento duplo: necessito, mas
tenho medo. É verdade! A gente se acostuma demais. Com tudo o que é mais
desumanizador e perverso, com tudo o que é aberrante.
Alguém poderia se contrapor, de
forma naturalizada por sinal. Sempre houve pobreza, riqueza, desigualdade etc. Não
é verdade. São inúmeros os relatos de experiência ao longo da história, curtas
ou mais duradoras, famosas ou quase desconhecidas, em que grupos sociais
distintos e até mesmo povos inteiros experimentaram modos de vida coletivos, em
que a lógica não consistia na abundância de uns sobre a miséria de outros e sim
na vida digna de todos. Ou pelo menos na busca deste horizonte. E ainda que
fosse apenas uma experiência isolada: ela seria suficiente para mostrar que a
desigualdade econômica é um processo construído socialmente e não um fenômeno
da natureza. É preciso, portanto, espantar essa ladainha que diuturnamente nos
é imposta segundo a qual é natural que haja – numa mesma comunidade, cidade ou
país – bilionários e miseráveis.
Mas de onde vem a normalidade com
que é tratado o assunto? Como é possível que numa situação de pandemia em que a
maioria dos que morrem são pobres e outros tantos milhões perdem empregos encaremos
tamanha discrepância econômica de forma tão trivial? Como é possível que o
jornalista passe, sem nenhum problema, da notícia do enriquecimento dos
bilionários para a previsão do tempo? E o pior: como podemos ouvir esse
procedimento jornalístico sem estranhamento?
Perguntas difíceis exigem
respostas complexas. Não me proponho a uma tarefa tão grande. Queria apenas
apontar um aspecto que, junto a outros tantos, podem nos ajudar a desenrolar
esse novelo. Falo do caráter mágico com que a vida social foi revestida há pelo
menos duzentos anos, o que tem a ver não apenas com a lógica de negócios
própria da sociedade de mercado, mas com o verniz com que fomos tingindo esta
sociedade. Dito de maneira mais direta: para que haja bilionários, é necessário
que haja miseráveis. É um jogo de forças. Para que se diminua a miséria, é
preciso que o mesmo se dê com a fortuna exorbitante. Simples assim. Qualquer
planejamento econômico decente para um país, estado ou município passaria por
reduzir os extremos. E daí seguir até o limite do equilíbrio que for desejado e
construído pelos cidadãos.
Ocorre que não é esta a compreensão
predominante em nossos tempos, mas outra: a da conciliação de fortunas cada vez
maiores de poucos com a miséria cada vez mais cruel de muitos. Evidentemente,
para os bilionários que já entr
Recentemente correu o noticiário a
informação de que houve, em plena pandemia do coronavírus, aumento da fortuna dos
brasileiros que possuem mais de um bilhão em patrimônio. A mesma sorte dos
ditos bilionários foi verificada nos demais países da América Latina, o que
confirma o cenário de meses anteriores em países como os Estados Unidos. Os
dados são da Forbes, revista de negócios que publica anualmente a lista de
bilionários no mundo, classificados de acordo com suas fortunas. Sim. Existe
uma revista especializada no assunto. O que já é notável.
Soube da notícia enquanto ouvia
um programa matinal de rádio. Como de costume, as manchetes vão se sobrepondo
de tal maneira que assuntos de enorme relevância e outros corriqueiros formem um
mosaico. Assim é também o noticiário televisivo. No meu caso, o que veio depois
da notícia bombástica do aumento das fortunas dos bilionários foi a previsão do
tempo...
Naturalização. Esse é o termo. É
comum sua aplicação aos processos sociais que de tanto se repetirem passam a
ser vistos como naturais. Então, assim como a chuva que molha, o vento que
sopra e a fumaça que sobe também aspectos da vida social como a desigualdade
econômica passam a ser concebidos como inevitáveis. Um bom indicativo de que
tal processo se tenha dado está no senso comum, ou seja, aquela visão geral que
vai se cristalizando no cotidiano, nas conversas e nas mensagens trocadas. A
formulação varia, mas o seu conteúdo básico é este: “É assim mesmo!”. Por
vezes, há um reforço histórico no argumento: “Desde que o mundo é mundo foi
assim!”.
Entre as dezenas de poemas
recitados pelo grande Antonio Abujamra no programa Provocação, não me esqueço
de um que me marcou de forma especial. Trata-se de “Eu sei, mas não devia”, de
Marina Colasanti. Convido o leitor, terminada a leitura desta crônica, pela
qual desde já agradeço imensamente, a fazer uma busca rápida aí no seu
navegador. Digite: “Abujamra a gente se acostuma vídeo”. O poema é brilhante
para ser lido, mas quando recitado com aquela propriedade fica soberbo.
Num chamado àquilo que poderíamos
nomear de “desnaturalização”, o poema dos desloca do senso comum para o campo
da reflexão. Não sei como é para você que já o leu ou você que o lerá daqui a
pouco, mas a minha experiência é sempre inquietante – ouvindo-o pelo Abujamra
eu diria que é assustadora. Volto a ele com sentimento duplo: necessito, mas
tenho medo. É verdade! A gente se acostuma demais. Com tudo o que é mais
desumanizador e perverso, com tudo o que é aberrante.
Alguém poderia se contrapor, de
forma naturalizada por sinal. Sempre houve pobreza, riqueza, desigualdade etc. Não
é verdade. São inúmeros os relatos de experiência ao longo da história, curtas
ou mais duradoras, famosas ou quase desconhecidas, em que grupos sociais
distintos e até mesmo povos inteiros experimentaram modos de vida coletivos, em
que a lógica não consistia na abundância de uns sobre a miséria de outros e sim
na vida digna de todos. Ou pelo menos na busca deste horizonte. E ainda que
fosse apenas uma experiência isolada: ela seria suficiente para mostrar que a
desigualdade econômica é um processo construído socialmente e não um fenômeno
da natureza. É preciso, portanto, espantar essa ladainha que diuturnamente nos
é imposta segundo a qual é natural que haja – numa mesma comunidade, cidade ou
país – bilionários e miseráveis.
Mas de onde vem a normalidade com
que é tratado o assunto? Como é possível que numa situação de pandemia em que a
maioria dos que morrem são pobres e outros tantos milhões perdem empregos encaremos
tamanha discrepância econômica de forma tão trivial? Como é possível que o
jornalista passe, sem nenhum problema, da notícia do enriquecimento dos
bilionários para a previsão do tempo? E o pior: como podemos ouvir esse
procedimento jornalístico sem estranhamento?
Perguntas difíceis exigem
respostas complexas. Não me proponho a uma tarefa tão grande. Queria apenas
apontar um aspecto que, junto a outros tantos, podem nos ajudar a desenrolar
esse novelo. Falo do caráter mágico com que a vida social foi revestida há pelo
menos duzentos anos, o que tem a ver não apenas com a lógica de negócios
própria da sociedade de mercado, mas com o verniz com que fomos tingindo esta
sociedade. Dito de maneira mais direta: para que haja bilionários, é necessário
que haja miseráveis. É um jogo de forças. Para que se diminua a miséria, é
preciso que o mesmo se dê com a fortuna exorbitante. Simples assim. Qualquer
planejamento econômico decente para um país, estado ou município passaria por
reduzir os extremos. E daí seguir até o limite do equilíbrio que for desejado e
construído pelos cidadãos.
Ocorre que não é esta a compreensão
predominante em nossos tempos, mas outra: a da conciliação de fortunas cada vez
maiores de poucos com a miséria cada vez mais cruel de muitos. Evidentemente,
para os bilionários que já entraram ou almejam entrar para a lista da revista
Forbes a posição é confortável. Mas nem tanto, porque os miseráveis podem vir a
reclamar. E como evitá-lo? É preciso propagar a noção de que tudo isso seja
natural. E contra a natureza não se luta, aprende-se a conviver. Uma grandiosa
engenharia de ideias e valores que tentam justificar o injustificável.
As coisas poderiam ser de outro
modo? Talvez. Certo é que uma das condições seria o questionamento de nossas
práticas e convicções tão cristalizadas. Como no poema de Marina Colasanti. Por
isso, reforço o convite: corra lá leitor! Ouça-o na voz de Abujamra. Eu o farei
agora mesmo. Antes que me acostume ainda mais.
*José Carlos Freire
Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni.
Fonte: Publicado em 04 de agosto de 2020 no Jornal Tribuna Diário no
link: https://diariotribuna.com.br/?p=2326