sábado, 17 de outubro de 2020

A felicidade II

Na crônica anterior propus uma reflexão sobre três modelos de felicidade. Gostaria de falar de outros três, lançando mão do mesmo esquema de divisão histórica – o mundo antigo, o medieval e o moderno. Desta vez, porém, farei o caminho inverso: partirei de nossos tempos, seguindo até a antiguidade.

Primeiramente, um modelo de múltiplas faces ao qual podemos chamar de ideal de vida comunitária alternativa. Desenvolveu-se, sobretudo, nos últimos sessenta anos. Há uma variedade enorme de manifestações que caberiam nesse referencial, desde os movimentos de contracultura nos anos 1970, passando pelas comunidades de cunho esotérico, até as atuais expressões mais elaboradas como as agrovilas e ecovilas, muitas vezes oriundas de movimentos sociais.

O que seria comum a essas modalidades? Independentemente do número de pessoas, famílias ou grupos que as compõem, as comunidades carregam essa marca essencial: são alternativas. A quê?  Sobretudo ao modo de vida capitalista, com sua lógica industrial, de competição a qualquer custo e de destruição do meio ambiente. Dessa resistência decorrem aspectos práticos como a produção coletiva, o consumo de alimentos orgânicos, a educação das crianças a partir de outros referenciais etc. Tentativas de forjar uma vida saudável e solidária, mesmo dentro de uma ordem social mais ampla que aponta para outra direção.

Quem se aproxima de tais comunidades ou simplesmente ouve falar sobre elas costuma ter uma reação mais ou menos esperada: são utópicas! Estou de acordo. A vida alternativa é um desafio gigantesco. Mas convidaria o leitor a, pelo menos, reconsiderar sua visão sobre essas iniciativas. Elas nos dizem algo muito sério: será que o modo de vida “normal”, a que a maioria se ajusta, de fato funciona? Para onde rumamos com os preceitos que regem nossa vida social? Talvez seja o caso de ouvir com mais atenção a provocação que nos vem da música “Balada do Louco”, de Arnaldo Baptista e Rita Lee: “Dizem que sou louco por pensar assim./ Se eu sou muito louco por eu ser feliz,/ mais louco é quem me diz e não é feliz”.

Regredindo no tempo, poderíamos nos deter em diversas manifestações ao longo da chamada Idade Média que, de algum modo, destoaram da oficialidade cristã. Enquanto esta se orientava pelo medo do pecado e pela ideia de purificação da alma, já que a felicidade somente se encontraria numa vida futura, muitos grupos se configuraram de outros modos. É o caso dos mendicantes, cujas expressões mais conhecidas são os seguidores de Domingos Gusmão e Francisco de Assis – para os católicos, “São Domingos” e “São Francisco”.

Tais grupos não estavam isentos de contradições e nem da marca institucional romana que era dominante. Mas havia algo mais interessante. É o caso de Francisco de Assis que recomendava práticas como o desapego de riquezas e honrarias; o cultivo da fraternidade; a contemplação da natureza como co-irmã do humano; e aquilo que, sem dúvida, era o mais profético: num tempo de pessoas sisudas e pregações ameaçadoras, Francisco falava da alegria de viver. É curioso que hoje, oito séculos depois, os valores defendidos por ele se mostrem ainda relevantes. Mais que o patrono da ecologia, Francisco de Assis é uma espécie de arquétipo do sábio, similar a outros místicos do ocidente e do oriente.

Por fim, recuando ainda mais, temos as escolas de vida que floresceram na Grécia antiga e posteriormente por toda a Roma. São chamados de “escolas” menos pelo conteúdo e mais pela forma de vida que procuram ensinar. Destaco uma entre elas que me parece muito atual: os epicuristas. O Jardim de Epicuro era o espaço educativo em que o filósofo divulgava ideias como o cultivo das coisas simples, a valorização da amizade, a consideração do sofrimento e da dor como inerentes à vida. Para ele todos deveriam se dedicar à filosofia, porque ninguém é demasiado jovem ou velho para buscar a saúde do espírito. Aí está um preceito valioso: o caráter terapêutico do conhecimento. Não essa ladainha que nos é imposta o tempo todo de aprender mais para competir melhor. Não. Para Epicuro, buscar o conhecimento é almejar a sabedoria, o que implica em um movimento duplo: admirar-se com as coisas simples e belas e, simultaneamente, desassombrar-se do medo do futuro. Além disso, o cultivo da sabedoria é uma maneira de superar ou suportar a hipocrisia das convenções sociais. Em síntese: uma maior tranquilidade da alma; hoje diríamos, quem sabe, um maior equilíbrio interior.

Para o epicurismo a vida pode se tornar prazerosa. Não por ser um mar de rosas e perfeita. Ela continua difícil e complicada, mas nossa postura diante dela se modifica: passamos a experimentar os momentos bons com mais profundidade e os momentos difíceis com maior serenidade. Assim, nosso ânimo fica predisposto a aproveitar os períodos de prosperidade, alegria e saúde; da mesma maneira como nos preparamos, sem ansiedade, para as fases de dificuldade, tristeza e doença. Isso tudo cercado de boas amizades e meditação.

São três referenciais de busca da felicidade. Nenhum deles, certamente, capaz de nos dar todas as respostas. Mas pelo menos nos oferecem caminhos. O leitor certamente terá encontrado pontos de contato entre as comunidades contemporâneas, as medievais e as antigas. Talvez pelo fato de que, apesar da força do modo de vida que impera em uma época, habita em nós um anseio por autenticidade, por profundidade. Talvez haja, nas brechas do cotidiano e nas “falhas do sistema”, trilhas possíveis de uma existência alternativa.

 

José Carlos Freire

Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni

 

Fonte: Publicado em 16 de outubro de 2020 no Jornal Tribuna Diário no link: https://diariotribuna.com.br/?p=5053  

sábado, 3 de outubro de 2020

A felicidade

As crianças adoram contar seus sonhos. E sua narrativa é rica em detalhes. Dá pra sentir sabores, ver as cores, ouvir os sons! Na minha casa isso é uma diversão. Outro dia Júlia veio com um sonho bacana. Era noite e por algum motivo ela só teria mais um dia de vida - os sonhos começam do nada e geralmente não vêm com explicações.  Então, como naquela antiga brincadeira do “o que você faria se tivesse apenas um dia?”, ela não titubeou: decidiu que queria brincar e tomar sorvete. Começou pelos jogos de tabuleiro em família, entre uma colherada e outra. Se não tivesse acordado certamente brincaria de outras coisas com amigas e pessoas queridas.

Ficamos papeando depois que ela contou o sonho. E eu pensei na felicidade, essa prima-irmã da sabedoria. Um indicativo de que essas duas foram alcançadas certamente seria esse: quando alguém, lançando mão da brincadeira do “o que você faria...” concluísse que suas vinte e quatro horas restantes seriam tais como as anteriores, ou seja, não precisaria correr atrás de nada que faltasse. Evidente que este é um propósito muito difícil de se alcançar. Sempre temos muita coisa que ainda queremos viver ou fazer.

Recordo-me do maravilhoso poema “Hospedaria” de Mário Quintana: “Esta vida é uma estranha hospedaria,/ de onde se parte quase sempre às tontas,/ pois nunca as nossas malas estão prontas/ e a nossa conta nunca está em dia." Que definição sublime! Exatamente isso: a felicidade talvez seja aquela condição em que as malas já estão prontas e as contas, em dia. Em outras palavras: não há mais amarras, não há coisas pendentes, não há âncoras. O barco pode navegar suavemente. Fôssemos sensatos, viveríamos cada dia como o último. Mas sabemos que não basta nossa vontade. Há inúmeros fatores que interferem nesse jogo. Entre eles, dois pequenos detalhes: trabalho e sobrevivência.

Mas vou me restringir à nossa experiência pessoal. A história da filosofia no Ocidente pode nos ajudar a pensar sobre ela. De modo sucinto, há três grandes referenciais de felicidade em torno dos quais inúmeros pensadores se debruçaram por séculos. Um primeiro é o de pertencimento a uma coletividade. Os gregos não inventaram isso, mas é certo que o cultivaram de um modo muito peculiar. No período áureo das chamadas cidades-Estado gregas, exaltava-se a participação nas decisões coletivas em locais como Esparta, Tebas e Atenas. Deixando de lado as contradições do mundo grego, podemos dizer que esse ideal ficou marcado em nosso arquétipo de vida feliz: situar-se em um projeto coletivo, contribuir para um fim social, fazer parte de uma ordem maior que nos integre.

Um segundo ideal é próprio da longa era cristã, que cobriu mais de um milênio de hegemonia do lado de cá do globo. O sentido de pertencimento também está ali, afinal, estamos falando de religião que é, via de regra, um agrupamento em torno de uma crença. Mas a contribuição mais importante do cristianismo para nossa civilização em termos de referencial de felicidade foi outra: a de preparação para uma vida futura. A ideia de salvação, nesse caso entendida como situação desejada após a morte, povoou fortemente o imaginário social. Não é o caso de refletir aqui sobre os problemas que isso trouxe – e são muitos, mas sim de fincar mais um pilar dos nossos modelos de felicidade: algo que está além, lá na frente, em um estágio futuro. Restaria, no presente, preparar-se para ele, criar suas condições de realização para quando chegar a hora.

O terceiro ideal desse esquema breve se encontra naquilo que é compreendido como modernidade, isto é, o período do avanço científico, da formação dos países como hoje os conhecemos, da aceleração da técnica, da noção de progresso. Mas é outra noção que nos interessa mais: a de autonomia do indivíduo. Todas as fichas foram apostadas na esperança de liberdade. Um sujeito livre e emancipado, sem a vigilância das instituições, sem o cerceamento das autoridades. Tal qual os dois anteriores, esse ideal mostrou inúmeras contradições. Mas o fato é que ele demarcou seu território: passou a compor também nosso arquétipo de felicidade.

Não se trata de indicar qual o melhor referencial, mas sim de compreender que os três nos atravessam o tempo todo. A depender da situação pessoal ou da conjuntura histórica um ou outro modelo de felicidade se impõe mais ou se articula com um segundo. Tal lógica, por vezes, nos dilacera ou nos deixa insatisfeitos: se pertencemos muito fortemente a algo, sentimos falta de liberdade; se nos tornamos muito autônomos e independentes, falta-nos a coletividade; se apostamos muito na preparação para a felicidade lá na frente, ficamos insatisfeitos por não experimentá-la minimamente agora; se investimos em um projeto de felicidade imediato, temos dúvida se o fazemos sozinhos ou em grupo. Enfim, a angústia segue. Tal estado de felicidade parece inatingível.

Não há resposta fácil para esse desafio. Mas há boas hipóteses. Uma delas está em buscar outros referenciais de felicidade que possam nos auxiliar. Isso, porém, fica para outra ocasião. Por ora, gostaria de encerrar retomando a provocação de Mário Quintana para me perguntar e para perguntar a você, caro leitor: como está sua “hospedaria”? Se você tiver um sonho igual ao de Júlia, em que precise escolher o que fazer na seu último dia, quais serão suas prioridades? O que você tem sido e feito é o que continuaria a ser e a fazer ou é provável que suas contas não estejam em dia?


José Carlos Freire

Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni.

Fonte: Publicado em 02 de outubro de 2020 no Jornal Tribuna Diário no link https://diariotribuna.com.br/?p=4657

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

A saudade

No final do segundo semestre de 2018 a turma do Serviço Social da UFVJM, como de costume ao término do curso, realizou a “Aula da saudade”, para a qual tive o prazer de ser convidado junto a outros(as) colegas professores(as). Já se tornara corriqueiro ver alunos e alunas completarem o ciclo que vai do ingresso no primeiro período à formatura, naquele e em outros cursos da Universidade. Mas aquela “aula” foi especial, porque seu conteúdo era um sentimento compartilhado. Foi um momento de reflexão importante para mim. Contei aos alunos(as) e colegas que quando termina um semestre letivo eu me despeço da sala vazia. Naquele breve instante após o encerramento da última avaliação e antes que a equipe da limpeza venha organizar a sala eu me silencio e contemplo as cadeiras, na tentativa de gravar os momentos vividos.

Faço a mesma coisa quando me mudo de casa. Após retirar os móveis, fica tudo calmo e dá até para ouvir o eco dos passos. As paredes parecem se alargar e a casa fica maior. Todas as imagens vividas em cada cômodo se sobrepõem como num filme. Por mais simples e corriqueiros que sejam os dias de aula de um semestre ou os acontecimentos triviais do cotidiano familiar, são momentos vividos, convividos, compartilhados. Fizeram parte de minha história. Encaro isso como forma de ganhar força para o próximo passo, a próxima casa, a próxima etapa da vida.

Mas isso é em tempos normais. Pensar sobre saudade em um contexto tão atípico como o nosso é diferente. Talvez você, leitor, compartilhe comigo da sensação estranha que esta pandemia vai deixando. Penso que seja mais que falta dos amigos, parentes, pessoas queridas. É uma espécie de vazio. Uma certeza incômoda de incompletude do encontro, de impossibilidade de afeto.

Carregamos todos nós, uns menos, outros mais, uma raiz ibérica, de onde costumam dizer que vem esse sentimento complexo que é a saudade. Ele é uma espécie de “sentimento-imã”, que agrega outros como a nostalgia, o pesar, a dor da perda, a vontade de voltar etc. Complicado explicar, na verdade, o que seja saudade. Prova disso é a dificuldade de se traduzir, segundo os linguistas, esse termo do português para outras línguas.

Para mim, esse sentimento lusitano se mistura com outras manifestações que nos compõem a identidade. A perda da terra de origem dos africanos para cá trazidos como escravos nos legou um buraco na alma, uma chaga que não se cura. Da mesma maneira os povos originários da América Latina, desterrados em sua própria terra, perderam sua raiz, sua simbiose com a natureza. Herdamos da colonização um apagamento, uma desmemória.

Então, entre os muitos lados do termo saudade, existe esse, mais sociológico. Mas há outros lados. O mais comum é o que remete às relações com pessoas queridas que vamos conhecendo pelo tortuoso caminho da vida. Esse aspecto da saudade é o que fez Álvaro de Campos assim se expressar em “Aniversário”, um poema cheio de lembranças: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, eu era feliz e ninguém estava morto [...]”. E encerra o poema dizendo: “Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!”.

Nesse caso, a saudade está quase sempre associada em nosso imaginário, à solidão, àquela situação de fragilidade e abandono de um professor com a sala vazia ao final do semestre, da mãe que arruma o quarto do filho que partiu, do pai na plataforma que acena para a filha no ônibus. É assim que o grande compositor cubano, Pablo Milanés a define: “A solidão é um pássaro grande e multicolorido que já não tem asas para voar e a cada nova tentativa sente mais dor”.

Penso que a insensibilidade não seja novidade de nossos tempos. Sempre houve figuras públicas que propagaram absurdos, não se importando com o que causariam em quem os ouve. No contexto de hoje, ao invés de menosprezar ou ridicularizar a situação de pandemia, deveriam tais figuras se calar em respeito a todos que sofrem e se angustiam com a própria doença, o desemprego, a falta de grana, a perda de horizontes, a interrupção de sonhos. Se não isso, ao menos a dignidade de respeitar a memória dos que morreram em razão da pandemia e a dor dos seus parentes.

Tenhamos outra régua de medida. Aquela que compreende o sofrimento de uma pessoa como sofrimento da humanidade toda. Nesse caso, a saudade imensa que sentimos de parentes e de amigos nesta pandemia interminável pode ganhar outra dimensão: ela passa a ser assimilada com mais leveza. Olhando para quem perdeu pessoas da família ou amigos próximos, aqueles entre nós que fomos poupados dessa situação podemos dizer: “Não sei o quanto é sua dor, mas por sentir um pedacinho dela no meu dia a dia sou solidário a você”. Contra a insensibilidade, a empatia. Contra a imbecilidade, a compaixão.

Chico Buarque na antológica canção “Pedaço de mim” diz que a saudade é “como um barco que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais”. Gosto dessa imagem. Mas acho também que a saudade é o vento que sopra as velas de nosso barquinho para frente, para outras águas, outros rios e outros mares.

Aos que ainda veremos, demore o quanto demorar, poderemos dizer o quanto fizeram falta. E será belo o encontro. Os que morreram e não podem mais compartilhar com seus entes a mesa e a conversa estarão juntos de outro modo: pela memória. A saudade, no fundo, indica mais a presença do que a ausência.

José Carlos Freire

Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni.

Fonte: Publicado em 04 de agosto de 2020 no Jornal Tribuna Diário. Link: https://diariotribuna.com.br/?p=3634

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Em defesa da ciência

As últimas quatro décadas foram alucinantes em termos de desenvolvimento tecnológico. Estaríamos, no dizer de muitos, na era da informação. Embora o avanço tecnológico possa inspirar uma ideia de salto para frente na civilização, é preciso cautela. A trama social é muito complexa. Entre tantos elementos que a compõem está o chamado senso comum, essa teia de ideias e concepções gerais que vamos construindo nas relações cotidianas. Ele é atravessado por interesses, preconceitos, juízos de valor, assim como por elaborações criativas e construções espontâneas. Tudo isso somado, forma uma determinada interpretação da vida e de seus fenômenos. Numa palavra, no senso comum impera a força da opinião. Como é sabido, uma opinião pode ser acertada ou não. Precisa ser verificada com maior rigor. É onde entra um outro modo de interpretação da realidade: a ciência.

Para encurtar a conversa: enquanto a opinião é livre e descompromissada, a ciência persegue a verdade com rigor e, para isso, traça um plano e uma meta. Ao alcançá-la, verifica se o plano foi bem sucedido ou não e por quais razões. Embora pareça complicada essa conversa, na realidade não é. Foi graças a tipos variados de “ciência” que construímos ferramentas, desenvolvemos a agricultura, confeccionamos artefatos etc. Quando dominamos algum processo, podemos testá-lo, aperfeiçoá-lo e reproduzi-lo. Se permanecemos no campo da mera opinião, ficamos ao sabor da sorte e do acaso.

O ponto mais alto dessa história poderia ser situado, sem maiores detalhes, há 500 anos. É o contexto em que se consolida o método científico moderno. Graças a ele, falando de modo genérico, conquistamos maiores condições de conforto de vida e, simultaneamente, superamos problemas que nos prejudicavam. Para ficar num recorte simples, o da saúde, é inegável que hoje temos maior controle sobre elementos que a prejudicam e também sobre outros que a beneficiam. A medicina moderna é um belo exemplo.

Dito desse modo, parecerá ao leitor que tudo foi um mar de rosas. E seu estranhamento é acertado. Aliás, quem se situa no campo da filosofia é, por princípio, crítico da ciência, porque sabe que ela não é neutra: está condicionada por fatores econômicos, políticos e sociais. Pode mesmo ser usada para prejuízo das pessoas ou de grupos sociais inteiros como a história mostra. Além disso, um acento exagerado na ciência – o chamado cientificismo – pode deixar em segundo plano ou mesmo ignorar elementos constitutivos da vida como a intuição, a sensibilidade e sobretudo a sabedoria ancestral dos povos que, paralelamente ao método científico, vem ao longo dos séculos constituindo também formas autênticas de saber.

Então não se trata de uma apologia cega. Mas o leitor viu bem no título: defesa da ciência. Por que? A razão é simples: porque o momento exige. A chamada era da informação não tem filtro, ou seja, da mesma maneira que possibilita a propagação de conhecimento seguro também dá espaço a opiniões sem fundamento algum, a não ser a convicção de quem as lança de forma inconsequente.

Em termos de saúde o que temos visto é um festival de horrores. Quinhentos anos de tradição de pesquisa e controle de medicamentos, vacinas e procedimentos, entre outras coisas, são colocados em dúvida por qualquer um que, acreditando ser dono da verdade, impõe a sua opinião como a verdadeira. Em tal situação é preciso afirmar de modo contundente: com todos os limites e contradições, o método científico ainda é o que temos de mais apropriado para discutir saúde pública. Aliás, um parêntese: é sobretudo pela finalidade social da ciência que se defende a manutenção das Universidades Públicas, centros de pesquisa e produção científicas. Se elas forem privatizadas, sua finalidade deixará de ser pública. Simples assim.

Volto ao ponto. Não, caro leitor. Aquele áudio de whatsapp, aquele “meme”, aquele vídeo de um suposto gênio que você e eu recebemos não pode ter o mesmo grau de validade que a pesquisa feita por um profissional que passa anos estudando, submete-se a avaliadores, respeita os procedimentos e somente depois publica os resultados em veículos apropriados. O que chega a você e a mim, nessa enxurrada de informações, é, com raras exceções, mera opinião, muitas vezes descaradamente falsa. Verifique a fonte, questione o conteúdo, analise sites de reconhecimento científico oficial. Pense bem. Faça um bem a si e à sociedade: não seja transmissor de informações que não sejam confiáveis.

Na base da tradição filosófico-científica ocidental está, entre outros pilares, a figura do grego Sócrates, para quem a sabedoria não consiste em posse da verdade, mas sim em reconhecer a própria ignorância e, por isso, lutar constantemente para superar as falsas opiniões. A ciência é uma tentativa permanente de busca do conhecimento. Não é um dogma. Por isso a necessidade de tempo, de teste, de verificação, de correção das falhas. Com tudo isso, ainda é o caminho para a solução de problemas. No que toca a saúde, um tema tão fundamental em nossos dias, não troquemos a ciência pela opinião de quem se julgue dono da verdade. Sobre ciência, ouçamos cientistas.

Uma posição social, um cargo político, uma função religiosa não conferem a ninguém o domínio da verdade sobre a ciência e muito menos sobre a saúde. A propósito, foram estas figuras que se indispuseram contra Sócrates na antiga Atenas. O que elas temiam? Aquele velho filósofo? Não. Temiam que as pessoas, ao ouvirem Sócrates, superassem o nível da mera opinião. Para manter seu prestígio social e o poder político, tais lideranças necessitavam que reflexão crítica, base da ciência, fosse combatida.

José Carlos Freire

Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni.

 Fonte: Jornal Tribuna Diário publicado em 17 de setembro de 2020 no link: https://diariotribuna.com.br/?p=4155

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Patacoadas no Reino da Bazófia

O rei da Bazófia é um homem naturalmente bom. Alguns lhe imputam certa rudeza, é verdade, mas não a deploram e sim a exaltam como marca de probidade inabalável e não conspurcada pela ferrugem política. Puro de sentimentos, chega a ser ingênuo. Costuma caminhar pelas ruas sem os seus seguranças, ato visto com reprovação por alguns ministros. “Minha segurança é o meu povo”, contrapõe o rei valente. E lá se vai o nosso herói, marchando confiante e folgazão pelas cercanias do castelo. Enquanto caminha, o mandatário vai arrebanhando um séquito de transeuntes que não se furta a idolatrá-lo, abraçá-lo, fotografá-lo. Em arroubos patrióticos, alguns proclamam: “Estamos com o senhor, Majestade!” “O senhor é o nosso rei!” O homem do povo sorri e acena, com as mãos fazendo “V”. 

Na última quinta-feira, o rei novamente empreendeu um passeio matinal e, ao sair de uma padaria, envolveu-se em evento desagradável que foi largamente divulgado (e supervalorizado, diga-se de passagem) por todos os jornais da Bazófia. Para contar-lhes o episódio não me valho das páginas tendenciosas dos periódicos, nem tampouco dos meus próprios olhos, mas afianço a veracidade dos fatos por tê-los ouvido de fonte ilibada (a qual prefiro manter em sigilo).

Antes de relatar os acontecimentos, cumpre recordar que a Bazófia passa por um momento peculiar com a epidemia da peste vermelha, moléstia infecciosa que assola o reino e já lhe cobra algumas vidas (se bem que a maioria delas seja de idosos improdutivos e cidadãos com saúde frágil).  Acostumado às adversidades, o bazofiano forte não se curvaria a qualquer microbiozinho xexelento. O certo é que o povo, gregário e de índole inquieta, via-se tolhido em seus hábitos mais sagrados, como as tertúlias etílicas, os passeios em bando e as folganças dominicais. Os patrícios sentiam-se incrédulos e confusos. Alguns se resignavam e se recolhiam, outros praguejavam na surdina. Os indomáveis se rebelavam contra a imposição de usar máscara e manter o isolamento. Viviam-se dias turbulentos no reino.  

Mas voltemos ao bizarro incidente. Afeito aos hábitos simples e prosaicos, o rei entrara na padaria para tomar um café e desfrutar da intimidade do povo. Em pé defronte ao balcão, entre dentadas num sonho macio, o rei sem máscara distribuía gracejos e conversava folgadamente. Falava-se de tudo (ou quase tudo). Futebol. O preço dos insumos. A lei de proteção ao empresariado. Os novos direitos do cidadão de bem. O rei apregoava os novos rumos da Bazófia, que enfim se endireitara. Era chegado o tempo da moralidade, da austeridade, do rigor fiscal etc. e tal. Funcionários e fregueses ouviam devotamente, entre fotos, risos e abraços. Em pouco tempo, uma pequena multidão aglomerou-se no local, formando-se um burburinho nas adjacências. Porém um frêmito indesejável abalou aquele momento de patente espontaneidade e empatia mútua.

Eis que o Diário da Bazófia escalara o repórter Tiago Tupinambá para cobrir as aparições do rei em público. Tupinambá era um jornalista experiente, porém com a pecha de ser questionador e petulante. O encontro não parecia ser muito auspicioso. Na calçada abarrotada de gente, o rei dirigia-se de volta ao castelo quando o repórter o interpelou:

— Majestade, o que o que vós tendes a dizer sobre o aumento de mortes pela peste vermelha nas últimas semanas?

— Cara chato! De novo com isso! Que assunto mais sem propósito para uma manhã tão harmônica — protestou uma senhora, após um muxoxo.

O rei contestou:

— Olha aqui, ô rapaz. Essas mortes aí são normais, ok? Coisas da vida. É o destino de todo mundo. Fazer o quê? Eu vou morrer. Você também vai. Está tudo dentro do previsto.

— Mas foram mais de 1000 mortes apenas num dia — retrucou o repórter. — Vossa Majestade acha isso normal?

— Olha só — responde o rei, já manifestando alguma irritação, você é índio? Tem uma cara de índio danada. Mas — pensativo — essa questão aí da peste vermelha, ela já está controlada aqui na Bazófia, ok? Inclusive, essas mortes aí nem foram todas pela peste, como está propagando esse seu jornaleco. Agora todo mundo que morre é pela tal peste? Vocês, da imprensa, deturpam tudo.

— Boa, Majestade! É isso mesmo, apoiado! — Acrescentou um senhor de cabelos grisalhos, acenando com a cabeça e batendo palmas freneticamente.

O arreliento repórter insistia em arguir o monarca: — Majestade, não usais a máscara, o que é regulamentado por lei, e não pareceis vos preocupar com essa aglomeração de pessoas. Vosso comportamento não representa um mau exemplo para a população?

— Que absurdo! — comentou uma das funcionárias, com a máscara no pescoço. — Isso é pergunta que se faça para um rei? Não se tem mais respeito nesse reino. Onde já se viu? 

— Estão vendo aí? A imprensa insiste em me atacar — interpõe o rei. — Eles não sabem trabalhar e me vêm com essas perguntas idiotas. São uns pulhas! Querem tumultuar o meu reinado. Eu não caio nessa! Esse tipo de pergunta não merece resposta, ok? Nesse momento, o pernicioso repórter se aproxima do rei e o questiona insistentemente: — Majestade, os hospitais estão superlotados de doentes. O reino não sabe mais onde enterrar tantos mortos. Não vos importais? Não vos compadeceis com a dor das pessoas?

Diante de tamanha afronta, o rei, que não tem sangue de barata, reage desferindo uma violenta bofetada no rosto do repórter, que se desequilibra e cai.

— Cabra macho! — Dispara um sujeito baixinho, com camisa da CBF (Confederação Bazofiana de Futebol) — Muito bem, Majestade. É isso mesmo! Não adianta argumentar com esses vermes comunistas. Parte logo pra porrada, que resolve. É assim que se faz!

A ação enérgica do rei gerou uma agitação no meio da turba. Muitos o aplaudiam, outros se exasperavam e gritavam euforicamente: “Viva o rei! Ele é o nosso rei! Deus salve o nosso rei!”

Ferido nos seus brios, o pernóstico repórter levanta-se da sarjeta e volta à carga. O guerreiro tupinambá, visivelmente irado, encara o rei com o dedo em riste: — Vossa Majestade não respeita a imprensa. Só porque é rei não tem o direito de me agredir dessa maneira. É um déspota! Um antidemocrático! Um ditador!

O impetuoso rei não suportaria tamanho acinte. Saca, de dentro do colete, uma pequena Mauser e dá 3 tiros, à queima-roupa, na cabeça do insolente, que tomba como um tronco podre e se estatela no chão. Do crânio crivado de balas, começa a minar um sangue espesso que vai se espalhando e se misturando com a terra da rua.

Inebriada de orgulho, a falange bazofiana ali presente frui aquele inesperado e delicioso frenesi. Que arrojo! Que destemor! Seguem-se palmas, vivas, urros e gritos roucos. — Ele é o nosso rei! Deus salve o nosso rei! — Refeito do pequeno stress, o monarca calmamente guarda a Mauser, arruma o cabelo pro lado, salta por cima do cadáver e toma o rumo do castelo, ovacionado pela multidão.

O dono da padaria chega na porta e grita: — Ô, Valdemar! Tira esse cara do meio da rua. O infeliz incomoda até depois de morto. Não vê que caiu na contramão e está atrapalhando o trânsito.

Por Luciano Alberto de Castro

Publicado em: https://www.revistabula.com/34916-patacoadas-no-reino-da-bazofia/ acesso em 24/08/2020,

terça-feira, 18 de agosto de 2020

E se voltássemos a escrever cartas?

Há dias tenho pensado em cartas. Sim, aquele gênero textual tão antigo. O leitor mais jovem pode achar engraçado ou mesmo um sinal de saudosismo. Diante de tantas formas mais rápidas e eficientes de transmissão de mensagens que sentido há em falar de cartas? Até mesmo o nosso velho carteiro já quase não as entrega mais!

O estranhamento é compreensível. Temos encurtado cada vez mais a comunicação, as frases, as palavras. As coisas mudam. A pergunta do título tem algo de retórico: não é possível voltar no tempo. Mas pergunto: a mudança não teria feito desaparecer aspectos importantes que a carta continha? Não falo da eficiência – os símbolos e imagens hoje utilizados estão aí para provar que a mensagem passa, a informação chega. Falo do processo, do tempo que se gastava em conceber uma carta, por vezes um rascunho até chegar à escrita, o que supunha uma imersão afetiva. Depois, a ida ao correio, a espera pelo envio, a recepção e a leitura. Tudo isso imaginado, porque não havia código de rastreamento. Ao final, a expectativa da resposta ou do efeito causado pela mensagem. Eram dias ou até semanas entre o início e o final do ciclo de uma simples carta. Ocorria aquilo que Rubem Alves muito bem sintetizou: aquela folha de papel, ao ser lida, acabava por unir mãos que estavam distantes. O capricho dos enamorados em colocar uma pétala de flor ou então borrifar perfume no papel elevava essa união a um plano mágico.

Além das cartas pessoais, vale a pena lembrar das muitas modalidades de carta. Carta instrutiva, carta aberta, carta pública, carta à redação de jornais. Os exemplos seriam inúmeros. Públicas ou pessoais, sempre uma condição indispensável: reflexão, maturação do assunto pelo emissor, escolha das palavras. A carta como exercício de diálogo. Chamem-me antiquado, sem problemas, mas suspeito que o modo de comunicação rápido e urgente que hoje cultivamos, a impaciência com os “textões”, a incapacidade patente de suportar mais de três parágrafos, tudo isso indica um empobrecimento da arte comunicativa. O leitor que chegou até aqui já é, por sinal, um sobrevivente dessa onda avassaladora. É preciso compor uma comitiva de especialistas para dar conta do tema. Comunicadores, estudiosos da tecnologia, linguistas, pesquisadores do comportamento humano etc. Deixo aqui apenas indagações. E duas experiências, uma antiga e uma recente.

Não faz muito tempo um grande amigo fez algo inusitado. Escreveu uma carta à mão, foi ao correio, depositou e aguardou que o ciclo se realizasse, tal como antigamente. Dispondo de todos os recursos tecnológicos modernos, achou por bem que a mensagem deveria ser enviada por carta. Acompanhei de longe o processo e fiquei pensando: talvez não seja o caso de atribuir àquele velho gênero um valor elevado mas sim de constatar que os nossos diversos meios de hoje nem sempre se mostram adequados. Como explicar a um adolescente empapuçado de aplicativos que, ao receber uma mensagem, não precisa responder imediatamente, podendo deixar para fazê-lo depois, com tempo para meditar e sondar os próprios sentimentos e aí saber o que deseja de fato dizer? Como lhe mostrar que a vida não se mede em números de caracteres e que – sim! – muitas vezes precisamos falar muito para que, carreando palavras, nós mesmos nos deparemos o com o que de fato queríamos dizer e no início não sabíamos?

A segunda experiência é de décadas passadas. Uma briga por coisas do cotidiano havia distanciado meu pai e seu irmão mais velho. Todos percebemos a amargura que aquela situação causava a ambos. Após alguns dias, meu pai resolveu escrever uma carta. Das coisas que fiz na vida esta é uma das que mais me dá orgulho: fui o responsável por levar uma mensagem que reaproximou dois irmãos. Um embaixador da paz com menos de dez anos naquele microcosmo rural. Aquela era uma situação em que a conversa pessoal estava interditada. A carta foi a única forma de quebrar a inimizade.

Como pensar situações semelhantes no nosso cotidiano tendo em vista os instrumentos dos quais hoje dispomos? Uma boa hipótese: damos novos significados! O correio eletrônico, o popular e-mail, teria substituído a carta; o áudio por aplicativo, o telefonema. Não sei se é tão simples assim. O pobre e-mail já parece obsoleto; o áudio não pode passar de trinta, quarenta segundos... A impressão que dá é que quanto mais ferramentas temos, menos falamos.

Não abusarei da paciência do leitor que até aqui se manteve firme. Encerro com a referência a Eduardo Galeano, grande escritor uruguaio cujos textos se parecem cartas escritas a cada um de nós. No “Livro dos Abraços”, em que recolhe pequenas histórias de partes distintas da América Latina e mesmo de outras regiões, Galeano narra o que se passou com um velho que morava num povoado nos arredores da cidade de Montevidéu. Criou-se a lenda de que ele havia juntado um grande tesouro em casa ao longo da vida. Certa feita, em uma de suas saídas para a cidade, a casa foi invadida por assaltantes que, após vasculhar sem sucesso os cômodos, só encontraram um pequeno baú de madeira, trancado a cadeado. Levaram-no e quando puderam finalmente abri-lo se depararam com o conteúdo: estava cheio de cartas. O tesouro eram as cartas de amor que o velhinho havia recebido ao longo da vida...

Fernando Pessoa dizia que as cartas de amor são ridículas. Mas mais ridículas seriam, para ele, as pessoas que nunca as escreveram. Se não há mais espaço para cartas, certamente ainda temos necessidade de falar para alguém do amor, da amizade, da afeição, da saudade que sentimos. A pergunta que fica é: como tratar de sentimentos tão grandiosos com tão poucos caracteres?


José Carlos Freire

Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni.

Fonte: Publicado em 04 de agosto de 2020 no Jornal Tribuna Diário no link: https://diariotribuna.com.br/?p=2836

terça-feira, 4 de agosto de 2020

A gente se acostuma

Recentemente correu o noticiário a informação de que houve, em plena pandemia do coronavírus, aumento da fortuna dos brasileiros que possuem mais de um bilhão em patrimônio. A mesma sorte dos ditos bilionários foi verificada nos demais países da América Latina, o que confirma o cenário de meses anteriores em países como os

Recentemente correu o noticiário a informação de que houve, em plena pandemia do coronavírus, aumento da fortuna dos brasileiros que possuem mais de um bilhão em patrimônio. A mesma sorte dos ditos bilionários foi verificada nos demais países da América Latina, o que confirma o cenário de meses anteriores em países como os Estados Unidos. Os dados são da Forbes, revista de negócios que publica anualmente a lista de bilionários no mundo, classificados de acordo com suas fortunas. Sim. Existe uma revista especializada no assunto. O que já é notável.

Soube da notícia enquanto ouvia um programa matinal de rádio. Como de costume, as manchetes vão se sobrepondo de tal maneira que assuntos de enorme relevância e outros corriqueiros formem um mosaico. Assim é também o noticiário televisivo. No meu caso, o que veio depois da notícia bombástica do aumento das fortunas dos bilionários foi a previsão do tempo...

Naturalização. Esse é o termo. É comum sua aplicação aos processos sociais que de tanto se repetirem passam a ser vistos como naturais. Então, assim como a chuva que molha, o vento que sopra e a fumaça que sobe também aspectos da vida social como a desigualdade econômica passam a ser concebidos como inevitáveis. Um bom indicativo de que tal processo se tenha dado está no senso comum, ou seja, aquela visão geral que vai se cristalizando no cotidiano, nas conversas e nas mensagens trocadas. A formulação varia, mas o seu conteúdo básico é este: “É assim mesmo!”. Por vezes, há um reforço histórico no argumento: “Desde que o mundo é mundo foi assim!”.

Entre as dezenas de poemas recitados pelo grande Antonio Abujamra no programa Provocação, não me esqueço de um que me marcou de forma especial. Trata-se de “Eu sei, mas não devia”, de Marina Colasanti. Convido o leitor, terminada a leitura desta crônica, pela qual desde já agradeço imensamente, a fazer uma busca rápida aí no seu navegador. Digite: “Abujamra a gente se acostuma vídeo”. O poema é brilhante para ser lido, mas quando recitado com aquela propriedade fica soberbo.

Num chamado àquilo que poderíamos nomear de “desnaturalização”, o poema dos desloca do senso comum para o campo da reflexão. Não sei como é para você que já o leu ou você que o lerá daqui a pouco, mas a minha experiência é sempre inquietante – ouvindo-o pelo Abujamra eu diria que é assustadora. Volto a ele com sentimento duplo: necessito, mas tenho medo. É verdade! A gente se acostuma demais. Com tudo o que é mais desumanizador e perverso, com tudo o que é aberrante.

Alguém poderia se contrapor, de forma naturalizada por sinal. Sempre houve pobreza, riqueza, desigualdade etc. Não é verdade. São inúmeros os relatos de experiência ao longo da história, curtas ou mais duradoras, famosas ou quase desconhecidas, em que grupos sociais distintos e até mesmo povos inteiros experimentaram modos de vida coletivos, em que a lógica não consistia na abundância de uns sobre a miséria de outros e sim na vida digna de todos. Ou pelo menos na busca deste horizonte. E ainda que fosse apenas uma experiência isolada: ela seria suficiente para mostrar que a desigualdade econômica é um processo construído socialmente e não um fenômeno da natureza. É preciso, portanto, espantar essa ladainha que diuturnamente nos é imposta segundo a qual é natural que haja – numa mesma comunidade, cidade ou país – bilionários e miseráveis.

Mas de onde vem a normalidade com que é tratado o assunto? Como é possível que numa situação de pandemia em que a maioria dos que morrem são pobres e outros tantos milhões perdem empregos encaremos tamanha discrepância econômica de forma tão trivial? Como é possível que o jornalista passe, sem nenhum problema, da notícia do enriquecimento dos bilionários para a previsão do tempo? E o pior: como podemos ouvir esse procedimento jornalístico sem estranhamento?

Perguntas difíceis exigem respostas complexas. Não me proponho a uma tarefa tão grande. Queria apenas apontar um aspecto que, junto a outros tantos, podem nos ajudar a desenrolar esse novelo. Falo do caráter mágico com que a vida social foi revestida há pelo menos duzentos anos, o que tem a ver não apenas com a lógica de negócios própria da sociedade de mercado, mas com o verniz com que fomos tingindo esta sociedade. Dito de maneira mais direta: para que haja bilionários, é necessário que haja miseráveis. É um jogo de forças. Para que se diminua a miséria, é preciso que o mesmo se dê com a fortuna exorbitante. Simples assim. Qualquer planejamento econômico decente para um país, estado ou município passaria por reduzir os extremos. E daí seguir até o limite do equilíbrio que for desejado e construído pelos cidadãos.

Ocorre que não é esta a compreensão predominante em nossos tempos, mas outra: a da conciliação de fortunas cada vez maiores de poucos com a miséria cada vez mais cruel de muitos. Evidentemente, para os bilionários que já entr

Recentemente correu o noticiário a informação de que houve, em plena pandemia do coronavírus, aumento da fortuna dos brasileiros que possuem mais de um bilhão em patrimônio. A mesma sorte dos ditos bilionários foi verificada nos demais países da América Latina, o que confirma o cenário de meses anteriores em países como os Estados Unidos. Os dados são da Forbes, revista de negócios que publica anualmente a lista de bilionários no mundo, classificados de acordo com suas fortunas. Sim. Existe uma revista especializada no assunto. O que já é notável.

Soube da notícia enquanto ouvia um programa matinal de rádio. Como de costume, as manchetes vão se sobrepondo de tal maneira que assuntos de enorme relevância e outros corriqueiros formem um mosaico. Assim é também o noticiário televisivo. No meu caso, o que veio depois da notícia bombástica do aumento das fortunas dos bilionários foi a previsão do tempo...

Naturalização. Esse é o termo. É comum sua aplicação aos processos sociais que de tanto se repetirem passam a ser vistos como naturais. Então, assim como a chuva que molha, o vento que sopra e a fumaça que sobe também aspectos da vida social como a desigualdade econômica passam a ser concebidos como inevitáveis. Um bom indicativo de que tal processo se tenha dado está no senso comum, ou seja, aquela visão geral que vai se cristalizando no cotidiano, nas conversas e nas mensagens trocadas. A formulação varia, mas o seu conteúdo básico é este: “É assim mesmo!”. Por vezes, há um reforço histórico no argumento: “Desde que o mundo é mundo foi assim!”.

Entre as dezenas de poemas recitados pelo grande Antonio Abujamra no programa Provocação, não me esqueço de um que me marcou de forma especial. Trata-se de “Eu sei, mas não devia”, de Marina Colasanti. Convido o leitor, terminada a leitura desta crônica, pela qual desde já agradeço imensamente, a fazer uma busca rápida aí no seu navegador. Digite: “Abujamra a gente se acostuma vídeo”. O poema é brilhante para ser lido, mas quando recitado com aquela propriedade fica soberbo.

Num chamado àquilo que poderíamos nomear de “desnaturalização”, o poema dos desloca do senso comum para o campo da reflexão. Não sei como é para você que já o leu ou você que o lerá daqui a pouco, mas a minha experiência é sempre inquietante – ouvindo-o pelo Abujamra eu diria que é assustadora. Volto a ele com sentimento duplo: necessito, mas tenho medo. É verdade! A gente se acostuma demais. Com tudo o que é mais desumanizador e perverso, com tudo o que é aberrante.

Alguém poderia se contrapor, de forma naturalizada por sinal. Sempre houve pobreza, riqueza, desigualdade etc. Não é verdade. São inúmeros os relatos de experiência ao longo da história, curtas ou mais duradoras, famosas ou quase desconhecidas, em que grupos sociais distintos e até mesmo povos inteiros experimentaram modos de vida coletivos, em que a lógica não consistia na abundância de uns sobre a miséria de outros e sim na vida digna de todos. Ou pelo menos na busca deste horizonte. E ainda que fosse apenas uma experiência isolada: ela seria suficiente para mostrar que a desigualdade econômica é um processo construído socialmente e não um fenômeno da natureza. É preciso, portanto, espantar essa ladainha que diuturnamente nos é imposta segundo a qual é natural que haja – numa mesma comunidade, cidade ou país – bilionários e miseráveis.

Mas de onde vem a normalidade com que é tratado o assunto? Como é possível que numa situação de pandemia em que a maioria dos que morrem são pobres e outros tantos milhões perdem empregos encaremos tamanha discrepância econômica de forma tão trivial? Como é possível que o jornalista passe, sem nenhum problema, da notícia do enriquecimento dos bilionários para a previsão do tempo? E o pior: como podemos ouvir esse procedimento jornalístico sem estranhamento?

Perguntas difíceis exigem respostas complexas. Não me proponho a uma tarefa tão grande. Queria apenas apontar um aspecto que, junto a outros tantos, podem nos ajudar a desenrolar esse novelo. Falo do caráter mágico com que a vida social foi revestida há pelo menos duzentos anos, o que tem a ver não apenas com a lógica de negócios própria da sociedade de mercado, mas com o verniz com que fomos tingindo esta sociedade. Dito de maneira mais direta: para que haja bilionários, é necessário que haja miseráveis. É um jogo de forças. Para que se diminua a miséria, é preciso que o mesmo se dê com a fortuna exorbitante. Simples assim. Qualquer planejamento econômico decente para um país, estado ou município passaria por reduzir os extremos. E daí seguir até o limite do equilíbrio que for desejado e construído pelos cidadãos.

Ocorre que não é esta a compreensão predominante em nossos tempos, mas outra: a da conciliação de fortunas cada vez maiores de poucos com a miséria cada vez mais cruel de muitos. Evidentemente, para os bilionários que já entraram ou almejam entrar para a lista da revista Forbes a posição é confortável. Mas nem tanto, porque os miseráveis podem vir a reclamar. E como evitá-lo? É preciso propagar a noção de que tudo isso seja natural. E contra a natureza não se luta, aprende-se a conviver. Uma grandiosa engenharia de ideias e valores que tentam justificar o injustificável.

As coisas poderiam ser de outro modo? Talvez. Certo é que uma das condições seria o questionamento de nossas práticas e convicções tão cristalizadas. Como no poema de Marina Colasanti. Por isso, reforço o convite: corra lá leitor! Ouça-o na voz de Abujamra. Eu o farei agora mesmo. Antes que me acostume ainda mais.


*José Carlos Freire

Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni.

Fonte: Publicado em 04 de agosto de 2020 no Jornal Tribuna Diário no link: https://diariotribuna.com.br/?p=2326

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