Há um texto célebre na história do pensamento universal que trata sobre o tempo. Seu autor é Agostinho de Hipona, filósofo de origem africana conhecido como Santo Agostinho, que viveu entre os anos 354 e 430 da nossa era.
Com intuito de levar seus leitores a refletir sobre a vida e
ajudá-los a estabelecer o que deve ser prioritário nas ações cotidianas,
Agostinho propõe uma profunda reflexão sobre o tempo, tendo como referência os
valores cristãos. Para o filósofo, não existe apenas um tempo, mas três! Aquilo
que entendemos como “tempo” é, na verdade, um composto de passado, presente e
futuro. Quanto ao passado a conclusão é evidente: ele já foi, ficou para trás,
não volta mais. Sobre o futuro Agostinho é igualmente enfático: ainda não se
concretizou, portanto, assim como o passado ele também não existe.
O que resta? O presente. Ainda assim com toda a sua
fragilidade, já que consiste em um instante breve. Na verdade, o presente é uma
transição contínua: o futuro, que não existia, passa a existir e, imediatamente,
vira passado... Se observarmos uma simples caminhada teremos a imagem adequada
do que o filósofo aponta: o passo seguinte se torna passado tão logo alternamos
os pés um atrás do outro.
No entanto, o passado continua conosco. Assim como o futuro,
de algum modo, também já se apresenta. O aparente paradoxo se resolve do
seguinte modo: o passado aparece no presente como memória; o futuro, como
projeção. São tempos da mente, sem existência material. O que existe de real é
apenas o presente, no qual recordamos o que já foi e projetamos na imaginação o
que ainda não é. Uma possível definição de sabedoria seria esta: viver o tempo
presente sem apego ao passado e diminuindo ao máximo a ansiedade quanto ao
futuro. Um presente assim vivido possibilitaria a preparação para um bom futuro
que, uma vez alcançado, transitaria ao passado de forma a nos deixar uma boa
memória.
Agostinho não está criando tal reflexão. Ela já existia em
outras escolas filosóficas anteriores. E vai voltar muitas vezes ao longo da
história. Será fundamental, por exemplo, no desenvolvimento da psicanálise. Mas
que importância teria tal reflexão, escrita há tantos séculos, num contexto
como o nosso? Por que o tempo se torna um tema tão relevante diante da pandemia
pelo coronavirus?
A resposta mais direta, mesmo que não muito agradável é
esta: situações de crise extrema evidenciam o óbvio mas que insistimos em não
ver em tempos de paz. Em outras palavras: não foi o coronavirus que tornou a
vida frágil, passageira e incerta. Ela sempre foi assim. Viver, por si, já é um
perigo constante, como lembrava Guimarães Rosa.
Caberia a todos nós, portanto, aproveitar o contexto de
pandemia e o consequente isolamento para realizar um balanço da vida, eleger
prioridades, abrir mão de futilidades, cultivando o essencial dessa aventura
tão fugaz que é a existência. Estaríamos diante do que alguns chamam de janela
de oportunidades: a vida nos oferecendo a chance de aperfeiçoamento pessoal e
coletivo. Perfeito. Mas nem tanto.
Por dois motivos. Primeiramente, poucos de nós temos
condições materiais que propiciem a vivência da pandemia como momento de
reflexão. Basta como exemplo o fato de que muitos não tem como trabalhar em casa
e, com isso, evitar maior chance de contaminação. A maioria é obrigada a se
arriscar dia a dia pela sobrevivência. O correr da semana se tornou uma batalha
constante e angustiante. O segundo motivo é mais grave: a reflexão de Agostinho
não se aplica ao Brasil. Pelo menos não diretamente. E não é simplesmente
porque viveu muito antes de nós existirmos como país. Explico-me melhor.
Tivéssemos superado as marcas históricas da herança
colonial, aspectos como a desigualdade social gritante, violência ostensiva à
população mais pobre, resquícios do escravismo, sistema educacional deficiente
e tantos outros problemas seriam apenas assunto para a memória. Viveríamos um presente diferente e tais questões
fariam parte do passado.
Ocorre que não é assim: o Brasil é um país em que o passado
insiste em se reatualizar constantemente. Mudando um pouco os temos de
Agostinho, é como se em nosso país não existe presente e nem futuro, apenas o
passado revisitado. Condições de vida de antes se repetem; doenças
antiquíssimas reaparecem; práticas políticas que imaginamos superadas
ressurgem. Os exemplos seriam inumeráveis.
Não me parece que o problema esteja na formulação feita por Agostinho
e sim na realidade difícil de nosso país. Oxalá pudéssemos passar pela pandemia
com segurança e, com isso, poder refletir sobre seu sentido em nossas vidas.
Quem sabe numa situação futura. Por agora, é um salve-se quem puder. Repetimos a
velha prática de correr atrás do prejuízo, evitar o tristemente terrível para
garantir que se dê “apenas” o terrível. E vamos tomando com naturalidade o
número de milhares de mortos que se avoluma. A tal ponto que cem mortos a
menos, de um dia para o outro, passa a ser motivo de consolação.
De tragédia em tragédia, vamos improvisando uma vida
nacional na qual elementos tão importantes como o bem estar da população, o
cuidado com os recursos naturais, segurança alimentar, planejamento econômico
subordinado à vida digna como valor, garantia do emprego e da moradia decentes
e tantas tarefas que deveriam estar na ordem do dia passam para o segundo
plano. Em primeiro lugar os velhos interesses, velhos arranjos, velhas
estruturas de poder. E a cada dia novo remendo no pano que se rasga.
Nesta lógica do mal menor, não há projeção sobre o futuro
que possa ser feita. Ele está interditado. O presente se consome todo na exaustiva
luta contra os fantasmas do passado.
*José Carlos Freire
Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni.
Fonte: Publicado em 23 de julho de 2020 no Jornal Tribuna Diário no
link: https://diariotribuna.com.br/?p=1899