sexta-feira, 24 de julho de 2020

A pandemia e a incerteza sobre o futuro

Há um texto célebre na história do pensamento universal que trata sobre o tempo. Seu autor é Agostinho de Hipona, filósofo de origem africana conhecido como Santo Agostinho, que viveu entre os anos 354 e 430 da nossa era.

Com intuito de levar seus leitores a refletir sobre a vida e ajudá-los a estabelecer o que deve ser prioritário nas ações cotidianas, Agostinho propõe uma profunda reflexão sobre o tempo, tendo como referência os valores cristãos. Para o filósofo, não existe apenas um tempo, mas três! Aquilo que entendemos como “tempo” é, na verdade, um composto de passado, presente e futuro. Quanto ao passado a conclusão é evidente: ele já foi, ficou para trás, não volta mais. Sobre o futuro Agostinho é igualmente enfático: ainda não se concretizou, portanto, assim como o passado ele também não existe.

O que resta? O presente. Ainda assim com toda a sua fragilidade, já que consiste em um instante breve. Na verdade, o presente é uma transição contínua: o futuro, que não existia, passa a existir e, imediatamente, vira passado... Se observarmos uma simples caminhada teremos a imagem adequada do que o filósofo aponta: o passo seguinte se torna passado tão logo alternamos os pés um atrás do outro.

No entanto, o passado continua conosco. Assim como o futuro, de algum modo, também já se apresenta. O aparente paradoxo se resolve do seguinte modo: o passado aparece no presente como memória; o futuro, como projeção. São tempos da mente, sem existência material. O que existe de real é apenas o presente, no qual recordamos o que já foi e projetamos na imaginação o que ainda não é. Uma possível definição de sabedoria seria esta: viver o tempo presente sem apego ao passado e diminuindo ao máximo a ansiedade quanto ao futuro. Um presente assim vivido possibilitaria a preparação para um bom futuro que, uma vez alcançado, transitaria ao passado de forma a nos deixar uma boa memória.

Agostinho não está criando tal reflexão. Ela já existia em outras escolas filosóficas anteriores. E vai voltar muitas vezes ao longo da história. Será fundamental, por exemplo, no desenvolvimento da psicanálise. Mas que importância teria tal reflexão, escrita há tantos séculos, num contexto como o nosso? Por que o tempo se torna um tema tão relevante diante da pandemia pelo coronavirus?

A resposta mais direta, mesmo que não muito agradável é esta: situações de crise extrema evidenciam o óbvio mas que insistimos em não ver em tempos de paz. Em outras palavras: não foi o coronavirus que tornou a vida frágil, passageira e incerta. Ela sempre foi assim. Viver, por si, já é um perigo constante, como lembrava Guimarães Rosa.

Caberia a todos nós, portanto, aproveitar o contexto de pandemia e o consequente isolamento para realizar um balanço da vida, eleger prioridades, abrir mão de futilidades, cultivando o essencial dessa aventura tão fugaz que é a existência. Estaríamos diante do que alguns chamam de janela de oportunidades: a vida nos oferecendo a chance de aperfeiçoamento pessoal e coletivo. Perfeito. Mas nem tanto.

Por dois motivos. Primeiramente, poucos de nós temos condições materiais que propiciem a vivência da pandemia como momento de reflexão. Basta como exemplo o fato de que muitos não tem como trabalhar em casa e, com isso, evitar maior chance de contaminação. A maioria é obrigada a se arriscar dia a dia pela sobrevivência. O correr da semana se tornou uma batalha constante e angustiante. O segundo motivo é mais grave: a reflexão de Agostinho não se aplica ao Brasil. Pelo menos não diretamente. E não é simplesmente porque viveu muito antes de nós existirmos como país. Explico-me melhor.

Tivéssemos superado as marcas históricas da herança colonial, aspectos como a desigualdade social gritante, violência ostensiva à população mais pobre, resquícios do escravismo, sistema educacional deficiente e tantos outros problemas seriam apenas assunto para a memória.  Viveríamos um presente diferente e tais questões fariam parte do passado.

Ocorre que não é assim: o Brasil é um país em que o passado insiste em se reatualizar constantemente. Mudando um pouco os temos de Agostinho, é como se em nosso país não existe presente e nem futuro, apenas o passado revisitado. Condições de vida de antes se repetem; doenças antiquíssimas reaparecem; práticas políticas que imaginamos superadas ressurgem. Os exemplos seriam inumeráveis.

Não me parece que o problema esteja na formulação feita por Agostinho e sim na realidade difícil de nosso país. Oxalá pudéssemos passar pela pandemia com segurança e, com isso, poder refletir sobre seu sentido em nossas vidas. Quem sabe numa situação futura. Por agora, é um salve-se quem puder. Repetimos a velha prática de correr atrás do prejuízo, evitar o tristemente terrível para garantir que se dê “apenas” o terrível. E vamos tomando com naturalidade o número de milhares de mortos que se avoluma. A tal ponto que cem mortos a menos, de um dia para o outro, passa a ser motivo de consolação.

De tragédia em tragédia, vamos improvisando uma vida nacional na qual elementos tão importantes como o bem estar da população, o cuidado com os recursos naturais, segurança alimentar, planejamento econômico subordinado à vida digna como valor, garantia do emprego e da moradia decentes e tantas tarefas que deveriam estar na ordem do dia passam para o segundo plano. Em primeiro lugar os velhos interesses, velhos arranjos, velhas estruturas de poder. E a cada dia novo remendo no pano que se rasga.

Nesta lógica do mal menor, não há projeção sobre o futuro que possa ser feita. Ele está interditado. O presente se consome todo na exaustiva luta contra os fantasmas do passado.

*José Carlos Freire

Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni.

Fonte: Publicado em 23 de julho de 2020 no Jornal Tribuna Diário no link: https://diariotribuna.com.br/?p=1899


segunda-feira, 6 de julho de 2020

Eu e a foice. Declaração de guerra

Estamos no meio de uma guerra – numa pandemia, provocada por um novo coronavírus, causador de uma doença denominada COVID-19, que significa doença provocada por corona vírus, ano de 2019. Um vírus atacando com ferocidade a humanidade. O cenário atual mostra milhões de pessoas infectadas em todo o mundo e o número de mortos caminha para um milhão. O conhecimento da situação, como divulgado por organizações/instituições de Saúde Pública, e por Governos de países, diz que o alívio da população só virá com o aparecimento da vacina – sabe Deus quando! Dizem os cientistas que que não há droga comprovadamente efetiva para combater o vírus. A receita é ficar isolado, “não ter contato com outro”, para evitar a contaminação de pessoas e a propagação do vírus. E, então, rezar! Pois a doença é aterrorizadora: em algumas pessoas, parece que a maioria, não acontece nada; em outras pode levar à morte. É a peste, com a sua foice! E cada um de nós, “deve ficar no seu canto”, aguardando “para ver o que acontece” É o isolamento forçado, como aquele que impingimos aos animais, presos no zoológico. E aí descobrimos como é sofrível – mas os bichos não reclamam. Pelo menos disso não sabemos, ou “fazemos de conta que não sabemos”. Nessa situação declaro a minha guerra pessoal ao vírus e ao “sistema”. Seguem o meu raciocínio e as minha justificativas.

Sou, como pessoa humana, um ser senciente pois sinto prazer e dor, satisfação e angústia, munido de intuição e fé. “Viver é experimentar incertezas, riscos e se expor emocionalmente”. Nem sempre é bom “deixar a vida nos levar”, pois, às vezes, temos de tomar atitudes para correção de rumo.

Retornando ao cenário “virulento”, com a divulgação de fatos tanto pela mídia (pouco) quanto pela internet, tem ocorrido registros relatados como bem -  sucedidos, de procedimentos preventivos com o emprego de algumas drogas, como da ivermectina, em que centenas de pessoas usuárias do medicamento, ou não ficaram doentes ou tiveram sintomas leves. Por que isso não tem sido divulgado como merece? Respondo: porque a sua eficácia não foi comprovada cientificamente, ou seja, testada em ensaios clínicos randomizados e de duplo cego. Isso é verdade sim, mas, também, há outra verdade bem cruel. A guerra está acontecendo e os ensaios levam muito tempo para serem concluídos – muitas pessoas morrem!

Frente a esta situação poucas autoridades têm mostrado coragem e discernimento para indicar ou receitar o medicamento, numa situação óbvia de escolha, de tomada de decisão. Numa situação dessa, quero participar ativamente, sem ficar esperando “o que acontece”. Quero usar do meu direito de escolha, segundo uma análise de custo/benefício, de decidir se tomo ou não a ivermectina.

Esse medicamento é um fármaco pertencente à classe das avermectinas, lactonas macrocíclicas, que apresenta atividade antiparasitária e comprovada atividade antiviral “in vitro”. As avermectinas foram descobertas na década de 1970, produzidas pela bactéria filamentosa, um actinomiceto, da espécie Streptomyces avermitidis. Quero lembrar, com base em meus conhecimentos de microbiologia industrial, inclusive por experiência própria em indústrias e na academia, que o desenvolvimento de um medicamento, seja originário de uma planta ou de um microrganismo ou mesmo de uma síntese química, começa na bancada do laboratório, com os ensaios e testes “in vitro”. Tratando-se de uma molécula “nova”, avalia-se o seu potencial, se possuidora de alguma atividade de interesse: antibiótica, antiviral, anticâncer, etc. Mostrando-se “interessante”, a pesquisa continua: testes de toxicidade, testes em animais; com resultados favoráveis passa-se à fase posterior, de ensaios clínicos, até ser considerado um medicamento, inclusive pelo poder público, da área da Saúde. Todo o processo demanda muito tempo e custa muitos recursos financeiros. Não se pula etapas. É o caso da ivermectina. Já é considerado um medicamento há muitos anos!   

Entre os efeitos adversos, registrados como leves e autolimitados, são citados tontura, vertigens, cefaleia, náuseas, vômitos e fatigas.

Em razão do exposto, pergunto: dá para arriscar? Tomei a primeira dose no final do mês de junho de 2020. Declarei a minha guerra particular!

 

*Gecernir Colen; cidadão, farmacêutico, microbiologista/doutor, membro da Academia de Letras de Teófilo Otoni e do Instituto  Histórico e Geográfico do Mucuri.


sábado, 4 de julho de 2020

CINE PALÁCIO

Escutei Caetano Veloso dizer, numa entrevista, que havia saído da Bahia aos 18 anos contra a sua vontade. Naquele tempo, decerto, preferiria a vida simples e vagarosa de Santo Amaro. Seria funcionário público, pescador, lutaria para purificar o Subaé; mas o destino o jogou no vórtice do mundo (pra nossa sorte). Quando saí de Teófilo Otoni, na insensatez dos meus 17 anos, eu o fiz de caso pensado. Era um passarinho de voo curto, como um tiziu, que queria virar andorinha e migrar pra outras paragens. As aves migratórias buscam alimento farto e clima mais ameno; eu ansiava pelas sabenças (ainda as persigo até hoje). Curioso é que a comichão de sair não matou o desejo de voltar. Era chegar julho e janeiro e lá estava eu, pisando o solo do Mucuri. Numa dessas idas sazonais, aborreceu-me a notícia da demolição do Cine Palácio.

O primeiro sentimento que me acudiu foi a saudade. Ainda que o tempo imprima em nós certo astigmatismo que nos faz ver o passado sempre tingido de azul, o cinema nos remete aos dias felizes. Grandes amizades, risadas plenas, sobressaltos, namoros (paqueras, como se dizia), beijos e outras ilicitudes sob a escuridão.  As matinês no Palácio tinham cheiro de pipoca e drops multicoloridos. Era um mundo gigantesco, desproporcional ao meu tamanho. Antes do filme, o canal 100 mostrava os clássicos do futebol em close e câmera lenta; e eu, também em câmera lenta, assistia deslumbrado. Olha, vai começar! Antes, os slides comerciais. Farmácia Indiana. Magda Magazin. Ô Bem Bolado. “Começa logo!”, gritava um impaciente. Enfim, as trombetas da 20th Century Fox. Silêncio total. Começava a viagem. Era nosso Cinema Paradiso.

Depois da nostalgia, vem a pergunta: por que demoliram o Cine Palácio? Distante da cidade e dos fatos, é temerário opinar. Mas tenho cá minhas suspeitas. O capital. Quem derrubou o Cine Palácio foi o capital. Qualquer outro elemento será frágil frente ao l'argent. Pelo que me consta, a Praça Tiradentes é tombada, logo, todos os prédios históricos do entorno da Praça devem (ou deveriam) ser igualmente preservados. Bobagem. Os processos legais no Brasil são um convite à transgressão. Primeiro se transgride; depois, se discute. Se negocia. Se posterga. Se esquece. Há dois lados: o empresário e o poder público. Por lei, ambos deveriam zelar pelo patrimônio, mas impera o pragmatismo. O empresário, a não ser que seja um mecenas, não preserva esse patrimônio porque não lhe dá lucro. O poder público não o preserva porque é caro e não dá voto. Implicitamente, ambos pensam: “Às favas com a cultura!”. 

Em verdade, vos digo que há mais um lado nessa história — como na música do Skank que diz que tudo tem três lados —: a população da cidade. Arrisco o palpite de que a maioria das pessoas apoiou a destruição do velho cinema e a construção da moderna e iluminada loja de sapatos. Até o nome é mais chic. Cine Palácio é como jogo de damas: coisa de velho. Teófilo Otoni precisa do novo, do desenvolvimento, do emprego! Falou-se em geração de 100 novos empregos (mais uma vez, me lembrei do canal 100). E outra: quem quiser assistir a filmes tem o Netflix, no conforto da sua casa. Que venha o progresso! Penso que cinema, literatura, pintura e história encontram cada vez menos adeptos. O país foi se emburrecendo, tornando-se mais cada vez mais fisiológico, duro, pragmático. Cultura foi virando mimimi. O Cine Palácio não resistiria mesmo a essa tríade adversa.  

Perdoe-me, leitor progressista, mas a nostalgia me assalta novamente. Teimo em pensar que a história poderia ter sido diferente. Um bem costurado acordo público-privado teria salvo o nosso gigante. Sonhei com o Palácio restaurado, excelso e imponente, iluminando a praça. Na próxima viagem, me apanharia sentado frouxamente, numa daquelas olorosas poltronas, assistindo a um show de Paulinho Pedra Azul ou rindo com Saulo Laranjeira. Forçando um pouco mais, estaria no jardim, sentado à mesa, bebendo cerveja com os velhos amigos e ouvindo chorinho ou MPB. Se oriente, rapaz (salve Gil, 7.8), volte pro mundo real. O velho Palácio se foi pra sempre. Como souvenir nostálgico, resta-me a poltrona de imbuia que comprei na última vez que estive em Teófilo Otoni. Incrível como ainda preserva o mesmo cheiro. De vez em quando, afundo o corpo nela, fecho os olhos e viajo para os tempos do meu Cinema Paradiso.          

 Goiânia, junho de 2020

 Luciano Alberto de Castro

Cronista e professor da Universidade Federal de Goiás


Fonte: Publicado em 01 de julho de 2020 no Jornal Tribuna Diáro no link: https://diariotribuna.com.br/?p=978


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