Há pouco tempo fui provocado a ler A hora da estrela, de Clarice Lispector. Isso partiu de uma conversa com uma velha amiga. Digo ler – e não reler – porque a primeira leitura que fiz há mais tempo foi rápida. Essa autora instigante, que está na fronteira entre literatura e filosofia, merece ser lida com toda a atenção.
A hora
da estrela é
último romance publicado em vida pela escritora e narra o cotidiano de uma
mulher nordestina que vive no Rio de Janeiro. Sua vida sem emoções, sem cores e
sem sabor. A narrativa seca e dura nos faz acompanhar Macabéa e,
inevitavelmente, nos afeiçoamos a ela.
Antes,
porém, quero dizer do modo como eu leio esse livro. O leitor certamente tem ou
terá o seu. A riqueza da arte é nos possibilitar formas diversas de
experiência. Não me arrisco, por exemplo, a fazer uma leitura de gênero do
romance, por não me julgar capacitado para isso. Nem diretamente uma leitura de
classe. Tais aspectos estão inegavelmente presentes, afinal, é um romance sobre
uma mulher pobre, nordestina e que sofre constantes humilhações na grande
cidade.
Leio “A
hora da estrela” como dois livros amarrados. Um que narra a história de
Macabéa; outro que se constitui como conjunto de pensamentos da autora. Os
dois, que se entrelaçam o tempo todo, oferecem-nos grandes momentos. Começo
pelo segundo.
“Enquanto
eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever”. Nada mais
pungente que isso. Por que se escreve? Filosofia, literatura? Resposta: porque
ainda existem perguntas. Como diz a autora: “Este livro é uma pergunta”. E a
opção de Clarice é por um texto cru, duro como a vida da protagonista, com
máxima simplicidade nas palavras. Afinal, “a palavra tem que se parecer com a
palavra”.
É curioso
como a narrativa demora a apresentar Macabéa. Parece haver uma angústia da
própria escritora em falar de algo que lhe provoca e, ao mesmo tempo, em procurar
a forma adequada de fazê-lo. Como falar de uma “inocência pisada”, de uma
“miséria anônima”? O que quer mostrar a autora com tais reflexões? Muitas podem
ser as respostas. Escolho a minha: ela escreve “porque há o direito ao grito”. Da
personagem e da autora.
O outro
livro, o central, é a história de Macabéa, ou melhor, “as aventuras de uma moça
numa cidade toda feita contra ela”. Nascida no sertão de Alagoas, órfã aos dois
anos e criada por uma tia beata e insensível, essa jovem de dezenove anos acaba
no Rio de Janeiro, trabalhando como datilógrafa. Divide o dormitório com quatro
companheiras que exaurem suas forças no trabalho. Seu primeiro namorado é o
ambicioso Olímpico de Jesus, que não passa de um sobrevivente, descontando nos
outros e sofrimento que a vida brava do sertão lhe impusera antes de partir pra
cidade grande. Olímpico não ama Macabéa, mas sim o seu projeto de tornar-se
homem de sucesso. Por isso não titubeia em constrangê-la. Macabéa tem no seu
curto namoro mais uma relação de silenciamento.
Como é a
vida de Macabéa? Simples: “ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando
e expirando”. Passa o dia no trabalho e as horas vagas ouvindo a Rádio Relógio.
Aprendeu a receber, sem reclamar, as pancadas na cabeça dadas pela tia e também
as que a vida mesma lhe dava: “As pancadas ela esquecia, pois, esperando-se um
pouco a dor termina por passar”. O leitor que vai acompanhando a narrativa se
sente incomodado, quer que Macabéa rompa suas cadeias: “Por que ela não reage?
Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce e obediente”. Tal como o narrador,
nossa vontade é a de “fazer com que quando ela acordasse encontrasse
simplesmente o grande luxo de viver”.
E há, sim,
momentos belos! Em um deles ela experimenta pela primeira vez a solidão, quando
falta ao trabalho e tem o dia e o quarto só para si. Saboreia mesmo uma
pontinha de liberdade. Noutro momento, ao ver a capa de um livro do seu patrão,
chega quase a se reconhecer no título “Humilhados e Ofendidos”.
Mas o
momento mais sublime é, sem dúvida, quando Macabéa conta a Olímpico, dono de
uma insensibilidade agressiva, sobre o dia que ouviu no rádio a música “Una
furtiva lacrima”. Sem saber porque, a música se materializara, arrancando-lhe
lágrimas; e agora chora novamente ao recordar a cena. Ela tenta até cantarolar
a canção, mas a vida não lhe dera um namorado capaz de ouvi-la e de entender a
grandeza daquela história. E ela se cala, uma vez mais.
Na última
parte do romance ocorre o encontro de Macabéa com a cartomante. Não o
detalharei, porque é preciso que o leitor percorra os parágrafos, com a calma
que eles merecem. É ali, por exemplo, que o afeto que a moça nunca recebera na
vida parece, enfim, emergir do mais profundo de si. A ponto de explodir em um
terno beijo na velha senhora. Como na infância, ao acariciar a cartomante, era
como se Macabéa acariciasse novamente a si mesma...
Mas,
afinal, ela se rebelou? Ela descobriu que pertencia a uma resistente espécie
“que um dia vai reivindicar o direito ao grito”? Aquela inocência foi, enfim,
respeitada neste inóspito mundo? Passo a bola a você, leitor.
Finalizando,
vale perguntar: O que este livro nos provoca? Posso falar do seu efeito em mim:
Macabéa somos todos nós! Como ela, que “era um acaso”, também não sabemos, ou
fingimos não saber, que, “numa sociedade técnica”, não passamos de parafusos
dispensáveis. E a vida? O que seria? Nem de longe uma coisa fácil. Como bem
disse o narrador: “A vida é um soco no estômago”.
* * *
Sugestão
de leitura: “A hora da estrela” (1977), de Clarice Lispector. Publicado pela
editora José Olympio. Disponível em PDF na internet.
José Carlos Freire
Professor na
UFVJM, campus de Teófilo Otoni.
Contato: freire.jose@hotmail.com
Fonte: Publicado em 17 de fevereiro de 2021 no Jornal Diário Tribuna no link: https://diariotribuna.com.br/?p=7890