sexta-feira, 18 de setembro de 2020

A saudade

No final do segundo semestre de 2018 a turma do Serviço Social da UFVJM, como de costume ao término do curso, realizou a “Aula da saudade”, para a qual tive o prazer de ser convidado junto a outros(as) colegas professores(as). Já se tornara corriqueiro ver alunos e alunas completarem o ciclo que vai do ingresso no primeiro período à formatura, naquele e em outros cursos da Universidade. Mas aquela “aula” foi especial, porque seu conteúdo era um sentimento compartilhado. Foi um momento de reflexão importante para mim. Contei aos alunos(as) e colegas que quando termina um semestre letivo eu me despeço da sala vazia. Naquele breve instante após o encerramento da última avaliação e antes que a equipe da limpeza venha organizar a sala eu me silencio e contemplo as cadeiras, na tentativa de gravar os momentos vividos.

Faço a mesma coisa quando me mudo de casa. Após retirar os móveis, fica tudo calmo e dá até para ouvir o eco dos passos. As paredes parecem se alargar e a casa fica maior. Todas as imagens vividas em cada cômodo se sobrepõem como num filme. Por mais simples e corriqueiros que sejam os dias de aula de um semestre ou os acontecimentos triviais do cotidiano familiar, são momentos vividos, convividos, compartilhados. Fizeram parte de minha história. Encaro isso como forma de ganhar força para o próximo passo, a próxima casa, a próxima etapa da vida.

Mas isso é em tempos normais. Pensar sobre saudade em um contexto tão atípico como o nosso é diferente. Talvez você, leitor, compartilhe comigo da sensação estranha que esta pandemia vai deixando. Penso que seja mais que falta dos amigos, parentes, pessoas queridas. É uma espécie de vazio. Uma certeza incômoda de incompletude do encontro, de impossibilidade de afeto.

Carregamos todos nós, uns menos, outros mais, uma raiz ibérica, de onde costumam dizer que vem esse sentimento complexo que é a saudade. Ele é uma espécie de “sentimento-imã”, que agrega outros como a nostalgia, o pesar, a dor da perda, a vontade de voltar etc. Complicado explicar, na verdade, o que seja saudade. Prova disso é a dificuldade de se traduzir, segundo os linguistas, esse termo do português para outras línguas.

Para mim, esse sentimento lusitano se mistura com outras manifestações que nos compõem a identidade. A perda da terra de origem dos africanos para cá trazidos como escravos nos legou um buraco na alma, uma chaga que não se cura. Da mesma maneira os povos originários da América Latina, desterrados em sua própria terra, perderam sua raiz, sua simbiose com a natureza. Herdamos da colonização um apagamento, uma desmemória.

Então, entre os muitos lados do termo saudade, existe esse, mais sociológico. Mas há outros lados. O mais comum é o que remete às relações com pessoas queridas que vamos conhecendo pelo tortuoso caminho da vida. Esse aspecto da saudade é o que fez Álvaro de Campos assim se expressar em “Aniversário”, um poema cheio de lembranças: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, eu era feliz e ninguém estava morto [...]”. E encerra o poema dizendo: “Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!”.

Nesse caso, a saudade está quase sempre associada em nosso imaginário, à solidão, àquela situação de fragilidade e abandono de um professor com a sala vazia ao final do semestre, da mãe que arruma o quarto do filho que partiu, do pai na plataforma que acena para a filha no ônibus. É assim que o grande compositor cubano, Pablo Milanés a define: “A solidão é um pássaro grande e multicolorido que já não tem asas para voar e a cada nova tentativa sente mais dor”.

Penso que a insensibilidade não seja novidade de nossos tempos. Sempre houve figuras públicas que propagaram absurdos, não se importando com o que causariam em quem os ouve. No contexto de hoje, ao invés de menosprezar ou ridicularizar a situação de pandemia, deveriam tais figuras se calar em respeito a todos que sofrem e se angustiam com a própria doença, o desemprego, a falta de grana, a perda de horizontes, a interrupção de sonhos. Se não isso, ao menos a dignidade de respeitar a memória dos que morreram em razão da pandemia e a dor dos seus parentes.

Tenhamos outra régua de medida. Aquela que compreende o sofrimento de uma pessoa como sofrimento da humanidade toda. Nesse caso, a saudade imensa que sentimos de parentes e de amigos nesta pandemia interminável pode ganhar outra dimensão: ela passa a ser assimilada com mais leveza. Olhando para quem perdeu pessoas da família ou amigos próximos, aqueles entre nós que fomos poupados dessa situação podemos dizer: “Não sei o quanto é sua dor, mas por sentir um pedacinho dela no meu dia a dia sou solidário a você”. Contra a insensibilidade, a empatia. Contra a imbecilidade, a compaixão.

Chico Buarque na antológica canção “Pedaço de mim” diz que a saudade é “como um barco que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais”. Gosto dessa imagem. Mas acho também que a saudade é o vento que sopra as velas de nosso barquinho para frente, para outras águas, outros rios e outros mares.

Aos que ainda veremos, demore o quanto demorar, poderemos dizer o quanto fizeram falta. E será belo o encontro. Os que morreram e não podem mais compartilhar com seus entes a mesa e a conversa estarão juntos de outro modo: pela memória. A saudade, no fundo, indica mais a presença do que a ausência.

José Carlos Freire

Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni.

Fonte: Publicado em 04 de agosto de 2020 no Jornal Tribuna Diário. Link: https://diariotribuna.com.br/?p=3634

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Em defesa da ciência

As últimas quatro décadas foram alucinantes em termos de desenvolvimento tecnológico. Estaríamos, no dizer de muitos, na era da informação. Embora o avanço tecnológico possa inspirar uma ideia de salto para frente na civilização, é preciso cautela. A trama social é muito complexa. Entre tantos elementos que a compõem está o chamado senso comum, essa teia de ideias e concepções gerais que vamos construindo nas relações cotidianas. Ele é atravessado por interesses, preconceitos, juízos de valor, assim como por elaborações criativas e construções espontâneas. Tudo isso somado, forma uma determinada interpretação da vida e de seus fenômenos. Numa palavra, no senso comum impera a força da opinião. Como é sabido, uma opinião pode ser acertada ou não. Precisa ser verificada com maior rigor. É onde entra um outro modo de interpretação da realidade: a ciência.

Para encurtar a conversa: enquanto a opinião é livre e descompromissada, a ciência persegue a verdade com rigor e, para isso, traça um plano e uma meta. Ao alcançá-la, verifica se o plano foi bem sucedido ou não e por quais razões. Embora pareça complicada essa conversa, na realidade não é. Foi graças a tipos variados de “ciência” que construímos ferramentas, desenvolvemos a agricultura, confeccionamos artefatos etc. Quando dominamos algum processo, podemos testá-lo, aperfeiçoá-lo e reproduzi-lo. Se permanecemos no campo da mera opinião, ficamos ao sabor da sorte e do acaso.

O ponto mais alto dessa história poderia ser situado, sem maiores detalhes, há 500 anos. É o contexto em que se consolida o método científico moderno. Graças a ele, falando de modo genérico, conquistamos maiores condições de conforto de vida e, simultaneamente, superamos problemas que nos prejudicavam. Para ficar num recorte simples, o da saúde, é inegável que hoje temos maior controle sobre elementos que a prejudicam e também sobre outros que a beneficiam. A medicina moderna é um belo exemplo.

Dito desse modo, parecerá ao leitor que tudo foi um mar de rosas. E seu estranhamento é acertado. Aliás, quem se situa no campo da filosofia é, por princípio, crítico da ciência, porque sabe que ela não é neutra: está condicionada por fatores econômicos, políticos e sociais. Pode mesmo ser usada para prejuízo das pessoas ou de grupos sociais inteiros como a história mostra. Além disso, um acento exagerado na ciência – o chamado cientificismo – pode deixar em segundo plano ou mesmo ignorar elementos constitutivos da vida como a intuição, a sensibilidade e sobretudo a sabedoria ancestral dos povos que, paralelamente ao método científico, vem ao longo dos séculos constituindo também formas autênticas de saber.

Então não se trata de uma apologia cega. Mas o leitor viu bem no título: defesa da ciência. Por que? A razão é simples: porque o momento exige. A chamada era da informação não tem filtro, ou seja, da mesma maneira que possibilita a propagação de conhecimento seguro também dá espaço a opiniões sem fundamento algum, a não ser a convicção de quem as lança de forma inconsequente.

Em termos de saúde o que temos visto é um festival de horrores. Quinhentos anos de tradição de pesquisa e controle de medicamentos, vacinas e procedimentos, entre outras coisas, são colocados em dúvida por qualquer um que, acreditando ser dono da verdade, impõe a sua opinião como a verdadeira. Em tal situação é preciso afirmar de modo contundente: com todos os limites e contradições, o método científico ainda é o que temos de mais apropriado para discutir saúde pública. Aliás, um parêntese: é sobretudo pela finalidade social da ciência que se defende a manutenção das Universidades Públicas, centros de pesquisa e produção científicas. Se elas forem privatizadas, sua finalidade deixará de ser pública. Simples assim.

Volto ao ponto. Não, caro leitor. Aquele áudio de whatsapp, aquele “meme”, aquele vídeo de um suposto gênio que você e eu recebemos não pode ter o mesmo grau de validade que a pesquisa feita por um profissional que passa anos estudando, submete-se a avaliadores, respeita os procedimentos e somente depois publica os resultados em veículos apropriados. O que chega a você e a mim, nessa enxurrada de informações, é, com raras exceções, mera opinião, muitas vezes descaradamente falsa. Verifique a fonte, questione o conteúdo, analise sites de reconhecimento científico oficial. Pense bem. Faça um bem a si e à sociedade: não seja transmissor de informações que não sejam confiáveis.

Na base da tradição filosófico-científica ocidental está, entre outros pilares, a figura do grego Sócrates, para quem a sabedoria não consiste em posse da verdade, mas sim em reconhecer a própria ignorância e, por isso, lutar constantemente para superar as falsas opiniões. A ciência é uma tentativa permanente de busca do conhecimento. Não é um dogma. Por isso a necessidade de tempo, de teste, de verificação, de correção das falhas. Com tudo isso, ainda é o caminho para a solução de problemas. No que toca a saúde, um tema tão fundamental em nossos dias, não troquemos a ciência pela opinião de quem se julgue dono da verdade. Sobre ciência, ouçamos cientistas.

Uma posição social, um cargo político, uma função religiosa não conferem a ninguém o domínio da verdade sobre a ciência e muito menos sobre a saúde. A propósito, foram estas figuras que se indispuseram contra Sócrates na antiga Atenas. O que elas temiam? Aquele velho filósofo? Não. Temiam que as pessoas, ao ouvirem Sócrates, superassem o nível da mera opinião. Para manter seu prestígio social e o poder político, tais lideranças necessitavam que reflexão crítica, base da ciência, fosse combatida.

José Carlos Freire

Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni.

 Fonte: Jornal Tribuna Diário publicado em 17 de setembro de 2020 no link: https://diariotribuna.com.br/?p=4155

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