quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Patacoadas no Reino da Bazófia

O rei da Bazófia é um homem naturalmente bom. Alguns lhe imputam certa rudeza, é verdade, mas não a deploram e sim a exaltam como marca de probidade inabalável e não conspurcada pela ferrugem política. Puro de sentimentos, chega a ser ingênuo. Costuma caminhar pelas ruas sem os seus seguranças, ato visto com reprovação por alguns ministros. “Minha segurança é o meu povo”, contrapõe o rei valente. E lá se vai o nosso herói, marchando confiante e folgazão pelas cercanias do castelo. Enquanto caminha, o mandatário vai arrebanhando um séquito de transeuntes que não se furta a idolatrá-lo, abraçá-lo, fotografá-lo. Em arroubos patrióticos, alguns proclamam: “Estamos com o senhor, Majestade!” “O senhor é o nosso rei!” O homem do povo sorri e acena, com as mãos fazendo “V”. 

Na última quinta-feira, o rei novamente empreendeu um passeio matinal e, ao sair de uma padaria, envolveu-se em evento desagradável que foi largamente divulgado (e supervalorizado, diga-se de passagem) por todos os jornais da Bazófia. Para contar-lhes o episódio não me valho das páginas tendenciosas dos periódicos, nem tampouco dos meus próprios olhos, mas afianço a veracidade dos fatos por tê-los ouvido de fonte ilibada (a qual prefiro manter em sigilo).

Antes de relatar os acontecimentos, cumpre recordar que a Bazófia passa por um momento peculiar com a epidemia da peste vermelha, moléstia infecciosa que assola o reino e já lhe cobra algumas vidas (se bem que a maioria delas seja de idosos improdutivos e cidadãos com saúde frágil).  Acostumado às adversidades, o bazofiano forte não se curvaria a qualquer microbiozinho xexelento. O certo é que o povo, gregário e de índole inquieta, via-se tolhido em seus hábitos mais sagrados, como as tertúlias etílicas, os passeios em bando e as folganças dominicais. Os patrícios sentiam-se incrédulos e confusos. Alguns se resignavam e se recolhiam, outros praguejavam na surdina. Os indomáveis se rebelavam contra a imposição de usar máscara e manter o isolamento. Viviam-se dias turbulentos no reino.  

Mas voltemos ao bizarro incidente. Afeito aos hábitos simples e prosaicos, o rei entrara na padaria para tomar um café e desfrutar da intimidade do povo. Em pé defronte ao balcão, entre dentadas num sonho macio, o rei sem máscara distribuía gracejos e conversava folgadamente. Falava-se de tudo (ou quase tudo). Futebol. O preço dos insumos. A lei de proteção ao empresariado. Os novos direitos do cidadão de bem. O rei apregoava os novos rumos da Bazófia, que enfim se endireitara. Era chegado o tempo da moralidade, da austeridade, do rigor fiscal etc. e tal. Funcionários e fregueses ouviam devotamente, entre fotos, risos e abraços. Em pouco tempo, uma pequena multidão aglomerou-se no local, formando-se um burburinho nas adjacências. Porém um frêmito indesejável abalou aquele momento de patente espontaneidade e empatia mútua.

Eis que o Diário da Bazófia escalara o repórter Tiago Tupinambá para cobrir as aparições do rei em público. Tupinambá era um jornalista experiente, porém com a pecha de ser questionador e petulante. O encontro não parecia ser muito auspicioso. Na calçada abarrotada de gente, o rei dirigia-se de volta ao castelo quando o repórter o interpelou:

— Majestade, o que o que vós tendes a dizer sobre o aumento de mortes pela peste vermelha nas últimas semanas?

— Cara chato! De novo com isso! Que assunto mais sem propósito para uma manhã tão harmônica — protestou uma senhora, após um muxoxo.

O rei contestou:

— Olha aqui, ô rapaz. Essas mortes aí são normais, ok? Coisas da vida. É o destino de todo mundo. Fazer o quê? Eu vou morrer. Você também vai. Está tudo dentro do previsto.

— Mas foram mais de 1000 mortes apenas num dia — retrucou o repórter. — Vossa Majestade acha isso normal?

— Olha só — responde o rei, já manifestando alguma irritação, você é índio? Tem uma cara de índio danada. Mas — pensativo — essa questão aí da peste vermelha, ela já está controlada aqui na Bazófia, ok? Inclusive, essas mortes aí nem foram todas pela peste, como está propagando esse seu jornaleco. Agora todo mundo que morre é pela tal peste? Vocês, da imprensa, deturpam tudo.

— Boa, Majestade! É isso mesmo, apoiado! — Acrescentou um senhor de cabelos grisalhos, acenando com a cabeça e batendo palmas freneticamente.

O arreliento repórter insistia em arguir o monarca: — Majestade, não usais a máscara, o que é regulamentado por lei, e não pareceis vos preocupar com essa aglomeração de pessoas. Vosso comportamento não representa um mau exemplo para a população?

— Que absurdo! — comentou uma das funcionárias, com a máscara no pescoço. — Isso é pergunta que se faça para um rei? Não se tem mais respeito nesse reino. Onde já se viu? 

— Estão vendo aí? A imprensa insiste em me atacar — interpõe o rei. — Eles não sabem trabalhar e me vêm com essas perguntas idiotas. São uns pulhas! Querem tumultuar o meu reinado. Eu não caio nessa! Esse tipo de pergunta não merece resposta, ok? Nesse momento, o pernicioso repórter se aproxima do rei e o questiona insistentemente: — Majestade, os hospitais estão superlotados de doentes. O reino não sabe mais onde enterrar tantos mortos. Não vos importais? Não vos compadeceis com a dor das pessoas?

Diante de tamanha afronta, o rei, que não tem sangue de barata, reage desferindo uma violenta bofetada no rosto do repórter, que se desequilibra e cai.

— Cabra macho! — Dispara um sujeito baixinho, com camisa da CBF (Confederação Bazofiana de Futebol) — Muito bem, Majestade. É isso mesmo! Não adianta argumentar com esses vermes comunistas. Parte logo pra porrada, que resolve. É assim que se faz!

A ação enérgica do rei gerou uma agitação no meio da turba. Muitos o aplaudiam, outros se exasperavam e gritavam euforicamente: “Viva o rei! Ele é o nosso rei! Deus salve o nosso rei!”

Ferido nos seus brios, o pernóstico repórter levanta-se da sarjeta e volta à carga. O guerreiro tupinambá, visivelmente irado, encara o rei com o dedo em riste: — Vossa Majestade não respeita a imprensa. Só porque é rei não tem o direito de me agredir dessa maneira. É um déspota! Um antidemocrático! Um ditador!

O impetuoso rei não suportaria tamanho acinte. Saca, de dentro do colete, uma pequena Mauser e dá 3 tiros, à queima-roupa, na cabeça do insolente, que tomba como um tronco podre e se estatela no chão. Do crânio crivado de balas, começa a minar um sangue espesso que vai se espalhando e se misturando com a terra da rua.

Inebriada de orgulho, a falange bazofiana ali presente frui aquele inesperado e delicioso frenesi. Que arrojo! Que destemor! Seguem-se palmas, vivas, urros e gritos roucos. — Ele é o nosso rei! Deus salve o nosso rei! — Refeito do pequeno stress, o monarca calmamente guarda a Mauser, arruma o cabelo pro lado, salta por cima do cadáver e toma o rumo do castelo, ovacionado pela multidão.

O dono da padaria chega na porta e grita: — Ô, Valdemar! Tira esse cara do meio da rua. O infeliz incomoda até depois de morto. Não vê que caiu na contramão e está atrapalhando o trânsito.

Por Luciano Alberto de Castro

Publicado em: https://www.revistabula.com/34916-patacoadas-no-reino-da-bazofia/ acesso em 24/08/2020,

terça-feira, 18 de agosto de 2020

E se voltássemos a escrever cartas?

Há dias tenho pensado em cartas. Sim, aquele gênero textual tão antigo. O leitor mais jovem pode achar engraçado ou mesmo um sinal de saudosismo. Diante de tantas formas mais rápidas e eficientes de transmissão de mensagens que sentido há em falar de cartas? Até mesmo o nosso velho carteiro já quase não as entrega mais!

O estranhamento é compreensível. Temos encurtado cada vez mais a comunicação, as frases, as palavras. As coisas mudam. A pergunta do título tem algo de retórico: não é possível voltar no tempo. Mas pergunto: a mudança não teria feito desaparecer aspectos importantes que a carta continha? Não falo da eficiência – os símbolos e imagens hoje utilizados estão aí para provar que a mensagem passa, a informação chega. Falo do processo, do tempo que se gastava em conceber uma carta, por vezes um rascunho até chegar à escrita, o que supunha uma imersão afetiva. Depois, a ida ao correio, a espera pelo envio, a recepção e a leitura. Tudo isso imaginado, porque não havia código de rastreamento. Ao final, a expectativa da resposta ou do efeito causado pela mensagem. Eram dias ou até semanas entre o início e o final do ciclo de uma simples carta. Ocorria aquilo que Rubem Alves muito bem sintetizou: aquela folha de papel, ao ser lida, acabava por unir mãos que estavam distantes. O capricho dos enamorados em colocar uma pétala de flor ou então borrifar perfume no papel elevava essa união a um plano mágico.

Além das cartas pessoais, vale a pena lembrar das muitas modalidades de carta. Carta instrutiva, carta aberta, carta pública, carta à redação de jornais. Os exemplos seriam inúmeros. Públicas ou pessoais, sempre uma condição indispensável: reflexão, maturação do assunto pelo emissor, escolha das palavras. A carta como exercício de diálogo. Chamem-me antiquado, sem problemas, mas suspeito que o modo de comunicação rápido e urgente que hoje cultivamos, a impaciência com os “textões”, a incapacidade patente de suportar mais de três parágrafos, tudo isso indica um empobrecimento da arte comunicativa. O leitor que chegou até aqui já é, por sinal, um sobrevivente dessa onda avassaladora. É preciso compor uma comitiva de especialistas para dar conta do tema. Comunicadores, estudiosos da tecnologia, linguistas, pesquisadores do comportamento humano etc. Deixo aqui apenas indagações. E duas experiências, uma antiga e uma recente.

Não faz muito tempo um grande amigo fez algo inusitado. Escreveu uma carta à mão, foi ao correio, depositou e aguardou que o ciclo se realizasse, tal como antigamente. Dispondo de todos os recursos tecnológicos modernos, achou por bem que a mensagem deveria ser enviada por carta. Acompanhei de longe o processo e fiquei pensando: talvez não seja o caso de atribuir àquele velho gênero um valor elevado mas sim de constatar que os nossos diversos meios de hoje nem sempre se mostram adequados. Como explicar a um adolescente empapuçado de aplicativos que, ao receber uma mensagem, não precisa responder imediatamente, podendo deixar para fazê-lo depois, com tempo para meditar e sondar os próprios sentimentos e aí saber o que deseja de fato dizer? Como lhe mostrar que a vida não se mede em números de caracteres e que – sim! – muitas vezes precisamos falar muito para que, carreando palavras, nós mesmos nos deparemos o com o que de fato queríamos dizer e no início não sabíamos?

A segunda experiência é de décadas passadas. Uma briga por coisas do cotidiano havia distanciado meu pai e seu irmão mais velho. Todos percebemos a amargura que aquela situação causava a ambos. Após alguns dias, meu pai resolveu escrever uma carta. Das coisas que fiz na vida esta é uma das que mais me dá orgulho: fui o responsável por levar uma mensagem que reaproximou dois irmãos. Um embaixador da paz com menos de dez anos naquele microcosmo rural. Aquela era uma situação em que a conversa pessoal estava interditada. A carta foi a única forma de quebrar a inimizade.

Como pensar situações semelhantes no nosso cotidiano tendo em vista os instrumentos dos quais hoje dispomos? Uma boa hipótese: damos novos significados! O correio eletrônico, o popular e-mail, teria substituído a carta; o áudio por aplicativo, o telefonema. Não sei se é tão simples assim. O pobre e-mail já parece obsoleto; o áudio não pode passar de trinta, quarenta segundos... A impressão que dá é que quanto mais ferramentas temos, menos falamos.

Não abusarei da paciência do leitor que até aqui se manteve firme. Encerro com a referência a Eduardo Galeano, grande escritor uruguaio cujos textos se parecem cartas escritas a cada um de nós. No “Livro dos Abraços”, em que recolhe pequenas histórias de partes distintas da América Latina e mesmo de outras regiões, Galeano narra o que se passou com um velho que morava num povoado nos arredores da cidade de Montevidéu. Criou-se a lenda de que ele havia juntado um grande tesouro em casa ao longo da vida. Certa feita, em uma de suas saídas para a cidade, a casa foi invadida por assaltantes que, após vasculhar sem sucesso os cômodos, só encontraram um pequeno baú de madeira, trancado a cadeado. Levaram-no e quando puderam finalmente abri-lo se depararam com o conteúdo: estava cheio de cartas. O tesouro eram as cartas de amor que o velhinho havia recebido ao longo da vida...

Fernando Pessoa dizia que as cartas de amor são ridículas. Mas mais ridículas seriam, para ele, as pessoas que nunca as escreveram. Se não há mais espaço para cartas, certamente ainda temos necessidade de falar para alguém do amor, da amizade, da afeição, da saudade que sentimos. A pergunta que fica é: como tratar de sentimentos tão grandiosos com tão poucos caracteres?


José Carlos Freire

Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni.

Fonte: Publicado em 04 de agosto de 2020 no Jornal Tribuna Diário no link: https://diariotribuna.com.br/?p=2836

terça-feira, 4 de agosto de 2020

A gente se acostuma

Recentemente correu o noticiário a informação de que houve, em plena pandemia do coronavírus, aumento da fortuna dos brasileiros que possuem mais de um bilhão em patrimônio. A mesma sorte dos ditos bilionários foi verificada nos demais países da América Latina, o que confirma o cenário de meses anteriores em países como os

Recentemente correu o noticiário a informação de que houve, em plena pandemia do coronavírus, aumento da fortuna dos brasileiros que possuem mais de um bilhão em patrimônio. A mesma sorte dos ditos bilionários foi verificada nos demais países da América Latina, o que confirma o cenário de meses anteriores em países como os Estados Unidos. Os dados são da Forbes, revista de negócios que publica anualmente a lista de bilionários no mundo, classificados de acordo com suas fortunas. Sim. Existe uma revista especializada no assunto. O que já é notável.

Soube da notícia enquanto ouvia um programa matinal de rádio. Como de costume, as manchetes vão se sobrepondo de tal maneira que assuntos de enorme relevância e outros corriqueiros formem um mosaico. Assim é também o noticiário televisivo. No meu caso, o que veio depois da notícia bombástica do aumento das fortunas dos bilionários foi a previsão do tempo...

Naturalização. Esse é o termo. É comum sua aplicação aos processos sociais que de tanto se repetirem passam a ser vistos como naturais. Então, assim como a chuva que molha, o vento que sopra e a fumaça que sobe também aspectos da vida social como a desigualdade econômica passam a ser concebidos como inevitáveis. Um bom indicativo de que tal processo se tenha dado está no senso comum, ou seja, aquela visão geral que vai se cristalizando no cotidiano, nas conversas e nas mensagens trocadas. A formulação varia, mas o seu conteúdo básico é este: “É assim mesmo!”. Por vezes, há um reforço histórico no argumento: “Desde que o mundo é mundo foi assim!”.

Entre as dezenas de poemas recitados pelo grande Antonio Abujamra no programa Provocação, não me esqueço de um que me marcou de forma especial. Trata-se de “Eu sei, mas não devia”, de Marina Colasanti. Convido o leitor, terminada a leitura desta crônica, pela qual desde já agradeço imensamente, a fazer uma busca rápida aí no seu navegador. Digite: “Abujamra a gente se acostuma vídeo”. O poema é brilhante para ser lido, mas quando recitado com aquela propriedade fica soberbo.

Num chamado àquilo que poderíamos nomear de “desnaturalização”, o poema dos desloca do senso comum para o campo da reflexão. Não sei como é para você que já o leu ou você que o lerá daqui a pouco, mas a minha experiência é sempre inquietante – ouvindo-o pelo Abujamra eu diria que é assustadora. Volto a ele com sentimento duplo: necessito, mas tenho medo. É verdade! A gente se acostuma demais. Com tudo o que é mais desumanizador e perverso, com tudo o que é aberrante.

Alguém poderia se contrapor, de forma naturalizada por sinal. Sempre houve pobreza, riqueza, desigualdade etc. Não é verdade. São inúmeros os relatos de experiência ao longo da história, curtas ou mais duradoras, famosas ou quase desconhecidas, em que grupos sociais distintos e até mesmo povos inteiros experimentaram modos de vida coletivos, em que a lógica não consistia na abundância de uns sobre a miséria de outros e sim na vida digna de todos. Ou pelo menos na busca deste horizonte. E ainda que fosse apenas uma experiência isolada: ela seria suficiente para mostrar que a desigualdade econômica é um processo construído socialmente e não um fenômeno da natureza. É preciso, portanto, espantar essa ladainha que diuturnamente nos é imposta segundo a qual é natural que haja – numa mesma comunidade, cidade ou país – bilionários e miseráveis.

Mas de onde vem a normalidade com que é tratado o assunto? Como é possível que numa situação de pandemia em que a maioria dos que morrem são pobres e outros tantos milhões perdem empregos encaremos tamanha discrepância econômica de forma tão trivial? Como é possível que o jornalista passe, sem nenhum problema, da notícia do enriquecimento dos bilionários para a previsão do tempo? E o pior: como podemos ouvir esse procedimento jornalístico sem estranhamento?

Perguntas difíceis exigem respostas complexas. Não me proponho a uma tarefa tão grande. Queria apenas apontar um aspecto que, junto a outros tantos, podem nos ajudar a desenrolar esse novelo. Falo do caráter mágico com que a vida social foi revestida há pelo menos duzentos anos, o que tem a ver não apenas com a lógica de negócios própria da sociedade de mercado, mas com o verniz com que fomos tingindo esta sociedade. Dito de maneira mais direta: para que haja bilionários, é necessário que haja miseráveis. É um jogo de forças. Para que se diminua a miséria, é preciso que o mesmo se dê com a fortuna exorbitante. Simples assim. Qualquer planejamento econômico decente para um país, estado ou município passaria por reduzir os extremos. E daí seguir até o limite do equilíbrio que for desejado e construído pelos cidadãos.

Ocorre que não é esta a compreensão predominante em nossos tempos, mas outra: a da conciliação de fortunas cada vez maiores de poucos com a miséria cada vez mais cruel de muitos. Evidentemente, para os bilionários que já entr

Recentemente correu o noticiário a informação de que houve, em plena pandemia do coronavírus, aumento da fortuna dos brasileiros que possuem mais de um bilhão em patrimônio. A mesma sorte dos ditos bilionários foi verificada nos demais países da América Latina, o que confirma o cenário de meses anteriores em países como os Estados Unidos. Os dados são da Forbes, revista de negócios que publica anualmente a lista de bilionários no mundo, classificados de acordo com suas fortunas. Sim. Existe uma revista especializada no assunto. O que já é notável.

Soube da notícia enquanto ouvia um programa matinal de rádio. Como de costume, as manchetes vão se sobrepondo de tal maneira que assuntos de enorme relevância e outros corriqueiros formem um mosaico. Assim é também o noticiário televisivo. No meu caso, o que veio depois da notícia bombástica do aumento das fortunas dos bilionários foi a previsão do tempo...

Naturalização. Esse é o termo. É comum sua aplicação aos processos sociais que de tanto se repetirem passam a ser vistos como naturais. Então, assim como a chuva que molha, o vento que sopra e a fumaça que sobe também aspectos da vida social como a desigualdade econômica passam a ser concebidos como inevitáveis. Um bom indicativo de que tal processo se tenha dado está no senso comum, ou seja, aquela visão geral que vai se cristalizando no cotidiano, nas conversas e nas mensagens trocadas. A formulação varia, mas o seu conteúdo básico é este: “É assim mesmo!”. Por vezes, há um reforço histórico no argumento: “Desde que o mundo é mundo foi assim!”.

Entre as dezenas de poemas recitados pelo grande Antonio Abujamra no programa Provocação, não me esqueço de um que me marcou de forma especial. Trata-se de “Eu sei, mas não devia”, de Marina Colasanti. Convido o leitor, terminada a leitura desta crônica, pela qual desde já agradeço imensamente, a fazer uma busca rápida aí no seu navegador. Digite: “Abujamra a gente se acostuma vídeo”. O poema é brilhante para ser lido, mas quando recitado com aquela propriedade fica soberbo.

Num chamado àquilo que poderíamos nomear de “desnaturalização”, o poema dos desloca do senso comum para o campo da reflexão. Não sei como é para você que já o leu ou você que o lerá daqui a pouco, mas a minha experiência é sempre inquietante – ouvindo-o pelo Abujamra eu diria que é assustadora. Volto a ele com sentimento duplo: necessito, mas tenho medo. É verdade! A gente se acostuma demais. Com tudo o que é mais desumanizador e perverso, com tudo o que é aberrante.

Alguém poderia se contrapor, de forma naturalizada por sinal. Sempre houve pobreza, riqueza, desigualdade etc. Não é verdade. São inúmeros os relatos de experiência ao longo da história, curtas ou mais duradoras, famosas ou quase desconhecidas, em que grupos sociais distintos e até mesmo povos inteiros experimentaram modos de vida coletivos, em que a lógica não consistia na abundância de uns sobre a miséria de outros e sim na vida digna de todos. Ou pelo menos na busca deste horizonte. E ainda que fosse apenas uma experiência isolada: ela seria suficiente para mostrar que a desigualdade econômica é um processo construído socialmente e não um fenômeno da natureza. É preciso, portanto, espantar essa ladainha que diuturnamente nos é imposta segundo a qual é natural que haja – numa mesma comunidade, cidade ou país – bilionários e miseráveis.

Mas de onde vem a normalidade com que é tratado o assunto? Como é possível que numa situação de pandemia em que a maioria dos que morrem são pobres e outros tantos milhões perdem empregos encaremos tamanha discrepância econômica de forma tão trivial? Como é possível que o jornalista passe, sem nenhum problema, da notícia do enriquecimento dos bilionários para a previsão do tempo? E o pior: como podemos ouvir esse procedimento jornalístico sem estranhamento?

Perguntas difíceis exigem respostas complexas. Não me proponho a uma tarefa tão grande. Queria apenas apontar um aspecto que, junto a outros tantos, podem nos ajudar a desenrolar esse novelo. Falo do caráter mágico com que a vida social foi revestida há pelo menos duzentos anos, o que tem a ver não apenas com a lógica de negócios própria da sociedade de mercado, mas com o verniz com que fomos tingindo esta sociedade. Dito de maneira mais direta: para que haja bilionários, é necessário que haja miseráveis. É um jogo de forças. Para que se diminua a miséria, é preciso que o mesmo se dê com a fortuna exorbitante. Simples assim. Qualquer planejamento econômico decente para um país, estado ou município passaria por reduzir os extremos. E daí seguir até o limite do equilíbrio que for desejado e construído pelos cidadãos.

Ocorre que não é esta a compreensão predominante em nossos tempos, mas outra: a da conciliação de fortunas cada vez maiores de poucos com a miséria cada vez mais cruel de muitos. Evidentemente, para os bilionários que já entraram ou almejam entrar para a lista da revista Forbes a posição é confortável. Mas nem tanto, porque os miseráveis podem vir a reclamar. E como evitá-lo? É preciso propagar a noção de que tudo isso seja natural. E contra a natureza não se luta, aprende-se a conviver. Uma grandiosa engenharia de ideias e valores que tentam justificar o injustificável.

As coisas poderiam ser de outro modo? Talvez. Certo é que uma das condições seria o questionamento de nossas práticas e convicções tão cristalizadas. Como no poema de Marina Colasanti. Por isso, reforço o convite: corra lá leitor! Ouça-o na voz de Abujamra. Eu o farei agora mesmo. Antes que me acostume ainda mais.


*José Carlos Freire

Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni.

Fonte: Publicado em 04 de agosto de 2020 no Jornal Tribuna Diário no link: https://diariotribuna.com.br/?p=2326

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