terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A esperança

 O ano de 2020 vai se encerrando. Um ano difícil, extenuante. Perdas de pessoas queridas, dificuldades diversas, angústia, medo. Não seria exagero se tomássemos tais elementos como destaques para nossa retrospectiva. No entanto, é com outra chave que gostaria de encerrar o ano nesta coluna. Pretendo falar de esperança. Mas quero fugir do lugar comum dos votos de felicidade, das frases de cartão, dos belos pensamentos que invadirão em breve nossas caixas de mensagens.

O final do ano é tempo propício para projeções. Traçamos planos, fazemos uma lista de coisas para o ano seguinte, prometemos mudanças. Está perfeito. O desafio é saber em que medida tais projetos se configuram como buscas reais ou meras fantasias. Além disso, há outro elemento mais decisivo em nosso tempo: o que esperar de um ano sobre o qual não conseguimos sequer ter ideia de como será?

Vou recuar um pouco. Por que temos esperança? Por que gastamos tanta energia com um futuro imaginado? Difícil dizer. Todos os seres transitam de um estado a outro, mudam com o tempo. Não há estagnação na natureza. Mas o bicho humano quer mais. Celso Viáfora sintetizou belamente isso em sua canção “Água do mar”: “Eu não quero pouco: / só quero tudo, / pelo tempo todo,/ pra todo mundo”. A esse anseio profundo Adélia Prado chamou de “fome”. Um sentimento dúbio, porque ao mesmo tempo que queremos saciá-la, de alguma forma desejamos que ela volte, para novamente buscar o alimento. Seus versos são certeiros: “Quarenta anos: não quero faca nem queijo. Quero a fome.”. Nós desejamos o desejo...

O filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677) dedicou-se ao tema dos afetos de forma rigorosa e demorada. Pontuo aqui apenas um ou outro elemento. De acordo com Spinoza, somos essencialmente desejo. Esse “desejo”, porém, não é o mero anseio por algo ou alguém, mas sim um impulso constitutivo de nosso ser para sua conservação ou crescimento. Como não somos isolados da natureza, e sim parte dela, seguimos sua ordem geral: um esforço permanente de preservação, para aumentar nossa potência de agir e de ser. Para encurtar o caminho: quando esse impulso é atendido, tornamo-nos mais alegres, mais potentes; quando não, é a tristeza que nos toma.

Isso tudo para dizer que a esperança é uma forma de alegria, só que antecipada na imaginação. É um desejo de alegria que está por vir. Por isso é frágil. O aumento de nossa potência de agir ainda não aconteceu, ele está projetado no futuro. Nesse sentido, se for reduzida à mera espera passiva, a um estado de expectativa pura e simples, a esperança se transforma em lenitivo, em alívio apaziguador do presente por meio de uma projeção imaginária. Ficamos parados à espera de um milagre. Porém, se transformada em postura ativa a esperança nos potencializa, nos motiva a abrir caminhos. Colocamo-nos em movimento. Para dar um exemplo pessoal numa lembrança que me vem, foi o que, intuitivamente, acabei fazendo no dia em que, com onze anos, disse à minha mãe, na volta da escolinha rural, que queria continuar os estudos, ir para a cidade, conhecer o mundo.

Mas é preciso cautela. Eu poderia facilmente incorrer numa narrativa falsa da história para dar um tom solene: “Naquele momento tracei um novo rumo para a família! ”. Não é verdade. Por dois motivos básicos: primeiro, não temos o poder de causar as coisas apenas por antecipá-las na mente. Participamos de processos, engajamo-nos em algo, dedicamo-nos a um objetivo. Portanto, são ações – e não a mera vontade – que fazem com que as coisas aconteçam ou não. O segundo motivo está intimamente ligado ao primeiro: não estamos isolados. Ao chegar no mundo o encontramos permeado de encontros e desencontros e, como quem sobe em um ônibus no centro da cidade, passamos a compor aquele complexo de relações. De tal maneira que uma decisão – por exemplo, a de uma criança que decide continuar seus estudos – não nasce do nada; é fruto de motivações que ela sequer imagina e que, na sequência, será incluída em uma trama altamente complexa de outras expectativas dos pais, família, vizinhos, a sociedade toda. Sem falar nas questões materiais, nas implicações concretas de uma determinada decisão, dinheiro, emprego etc.

O que quero com esse raciocínio tão complicado? Certamente não é cansar o leitor, mas sim lembrá-lo de que: 1) por mais belos que sejam seus anseios, somente o fato de projetá-los na mente não indica que se realizarão; 2) na tentativa de realizar seus objetivos para o próximo ano, precisará considerar a trama de relações, situações, circunstâncias e fatores diversos que não dependem de você.

Mas então não há sentido em ter esperança? Não diria isso. Diria, recordando uma vez mais Spinoza, que ela é um sentimento frágil, pois a incerteza também comparece no jogo. Onde há esperança há também o medo. Esperança é desejo de realizar, conquistar algo, ser alguma coisa. O medo é o seu reverso, pois não é certo que realizaremos, conquistaremos ou seremos o que planejamos.

Uma posição mais sábia, portanto, seria aquela que reveste a esperança de uma profunda reflexão crítica. Primeiramente, buscar entender o que desejamos e porque desejamos. Ter a consciência das motivações de nossa esperança. Concomitantemente, avaliar as reais condições de cumprimento daquilo para o qual nossa esperança aponta. É preciso pensar o que é necessário de esforço meu, em que medida depende não só de mim, mas de outros; de que forma é viável ou não; e, o mais importante de tudo, se é mesmo um bem aquilo que anseio. Numa palavra, conhecer melhor minhas próprias ações e também a trama em que estou inserido, que é sempre mais complexa do que eu consigo compreender.

Tudo isso não garante em nada uma maior eficiência no cumprimento de nossos sonhos. Só haveria receita de sucesso se o mundo respondesse ao nosso apelo ou se vivêssemos isolados. Posto que não é assim, a única vantagem em revestir nossa esperança de reflexão crítica é que, seja qual for o resultado, teremos avançado um pouco mais na capacidade de orientar nossas ações e sentimentos, conhecer melhor quem somos, deixando de esperar, passivamente, que o mundo e a vida nos sejam favoráveis.

Não há mal algum nas frases feitas de virada de ano, nos desejos de coisas boas para quem está ao nosso lado. Porém, é tudo ainda expressão do lado frágil da esperança. Voltando à questão: o que esperar do próximo ano? Claro que devemos querer o melhor, mas o decisivo mesmo se dá aqui e agora. Que venha 2021. Antes dele, porém, temos ainda um pedaço de 2020 para viver. Façamos dele o melhor possível.

 

José Carlos Freire

Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni

Fonte: Publicado em 18 de dezembro de 2020 no Jornal Diário Tribuna no link: https://diariotribuna.com.br/?p=6718

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

A felicidade - II

Na crônica anterior propus uma reflexão sobre três modelos de felicidade. Gostaria de falar de outros três, lançando mão do mesmo esquema de divisão histórica – o mundo antigo, o medieval e o moderno. Desta vez, porém, farei o caminho inverso: partirei de nossos tempos, seguindo até a antiguidade.

Primeiramente, um modelo de múltiplas faces ao qual podemos chamar de ideal de vida comunitária alternativa. Desenvolveu-se, sobretudo, nos últimos sessenta anos. Há uma variedade enorme de manifestações que caberiam nesse referencial, desde os movimentos de contracultura nos anos 1970, passando pelas comunidades de cunho esotérico, até as atuais expressões mais elaboradas como as agrovilas e ecovilas, muitas vezes oriundas de movimentos sociais.

O que seria comum a essas modalidades? Independentemente do número de pessoas, famílias ou grupos que as compõem, as comunidades carregam essa marca essencial: são alternativas. A quê?  Sobretudo ao modo de vida capitalista, com sua lógica industrial, de competição a qualquer custo e de destruição do meio ambiente. Dessa resistência decorrem aspectos práticos como a produção coletiva, o consumo de alimentos orgânicos, a educação das crianças a partir de outros referenciais etc. Tentativas de forjar uma vida saudável e solidária, mesmo dentro de uma ordem social mais ampla que aponta para outra direção.

Quem se aproxima de tais comunidades ou simplesmente ouve falar sobre elas costuma ter uma reação mais ou menos esperada: são utópicas! Estou de acordo. A vida alternativa é um desafio gigantesco. Mas convidaria o leitor a, pelo menos, reconsiderar sua visão sobre essas iniciativas. Elas nos dizem algo muito sério: será que o modo de vida “normal”, a que a maioria se ajusta, de fato funciona? Para onde rumamos com os preceitos que regem nossa vida social? Talvez seja o caso de ouvir com mais atenção a provocação que nos vem da música “Balada do Louco”, de Arnaldo Baptista e Rita Lee: “Dizem que sou louco por pensar assim./ Se eu sou muito louco por eu ser feliz,/ mais louco é quem me diz e não é feliz”.

Regredindo no tempo, poderíamos nos deter em diversas manifestações ao longo da chamada Idade Média que, de algum modo, destoaram da oficialidade cristã. Enquanto esta se orientava pelo medo do pecado e pela ideia de purificação da alma, já que a felicidade somente se encontraria numa vida futura, muitos grupos se configuraram de outros modos. É o caso dos mendicantes, cujas expressões mais conhecidas são os seguidores de Domingos Gusmão e Francisco de Assis – para os católicos, “São Domingos” e “São Francisco”.

Tais grupos não estavam isentos de contradições e nem da marca institucional romana que era dominante. Mas havia algo mais interessante. É o caso de Francisco de Assis que recomendava práticas como o desapego de riquezas e honrarias; o cultivo da fraternidade; a contemplação da natureza como co-irmã do humano; e aquilo que, sem dúvida, era o mais profético: num tempo de pessoas sisudas e pregações ameaçadoras, Francisco falava da alegria de viver. É curioso que hoje, oito séculos depois, os valores defendidos por ele se mostrem ainda relevantes. Mais que o patrono da ecologia, Francisco de Assis é uma espécie de arquétipo do sábio, similar a outros místicos do ocidente e do oriente.

Por fim, recuando ainda mais, temos as escolas de vida que floresceram na Grécia antiga e posteriormente por toda a Roma. São chamados de “escolas” menos pelo conteúdo e mais pela forma de vida que procuram ensinar. Destaco uma entre elas que me parece muito atual: os epicuristas. O Jardim de Epicuro era o espaço educativo em que o filósofo divulgava ideias como o cultivo das coisas simples, a valorização da amizade, a consideração do sofrimento e da dor como inerentes à vida. Para ele todos deveriam se dedicar à filosofia, porque ninguém é demasiado jovem ou velho para buscar a saúde do espírito. Aí está um preceito valioso: o caráter terapêutico do conhecimento. Não essa ladainha que nos é imposta o tempo todo de aprender mais para competir melhor. Não. Para Epicuro, buscar o conhecimento é almejar a sabedoria, o que implica em um movimento duplo: admirar-se com as coisas simples e belas e, simultaneamente, desassombrar-se do medo do futuro. Além disso, o cultivo da sabedoria é uma maneira de superar ou suportar a hipocrisia das convenções sociais. Em síntese: uma maior tranquilidade da alma; hoje diríamos, quem sabe, um maior equilíbrio interior.

Para o epicurismo a vida pode se tornar prazerosa. Não por ser um mar de rosas e perfeita. Ela continua difícil e complicada, mas nossa postura diante dela se modifica: passamos a experimentar os momentos bons com mais profundidade e os momentos difíceis com maior serenidade. Assim, nosso ânimo fica predisposto a aproveitar os períodos de prosperidade, alegria e saúde; da mesma maneira como nos preparamos, sem ansiedade, para as fases de dificuldade, tristeza e doença. Isso tudo cercado de boas amizades e meditação.

São três referenciais de busca da felicidade. Nenhum deles, certamente, capaz de nos dar todas as respostas. Mas pelo menos nos oferecem caminhos. O leitor certamente terá encontrado pontos de contato entre as comunidades contemporâneas, as medievais e as antigas. Talvez pelo fato de que, apesar da força do modo de vida que impera em uma época, habita em nós um anseio por autenticidade, por profundidade. Talvez haja, nas brechas do cotidiano e nas “falhas do sistema”, trilhas possíveis de uma existência alternativa.

 

José Carlos Freire

Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni

Fonte: Publicado em 16 de outubro de 2020 no Jornal Tribuna Diário no link: https://diariotribuna.com.br/?p=5053  

 

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