quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Pura Fachada

Fachada: o lado situado no exterior. O que é visto de forma primeira. O escancarado.

E é bem verdade que, embora nem sempre haja sintonia entre o que há de fora e o de dentro, por aqui isso é quase um postulado. A concordância é nenhuma, ou quase.

O ceticismo exposto esconde a utopia do amor. A boca que alardeia tendência poligâmica na verdade quer viver pra sempre no mesmo colo.   O cérebro que muitas vezes calcula o tamanho do passo queria mesmo era pular. Às vezes mergulhar de cabeça. Inconsequência. Anda, calcula, mais por medo do que por convicção. Raramente convicção.

O coração grita, exige atenção e, embora a receba de madrugada, na luz não tem a mesma sorte. É calado a cada volta do ponteiro. Que vergonha, oras, diz ele pra si mesmo.

Isso não existe, diz ele, querendo acreditar. Nega, balança a cabeça. O coração cobra na madrugada, mas já é tarde demais.

Acostumado a afirmar fatos e certezas, discorre sobre sua opinião como um jornal expõe um fato, mas omite suas inseguranças. Na verdade, não sente nenhuma certeza.

Às vezes deixa passar, sem querer, a voz do coração que só surgia no escuro, mas logo retifica, alegando engano. Pergunta-se: até quando vai durar todo esse peito de aço, mas esquece e segue. Na verdade, não esqueceu.

Que linda essa fachada! Vale a pena?

 

Luciano Leite de Castro

Goiânia, 18/11/2020.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

A transitoriedade

“Um dia sobre nós também / vai cair o esquecimento / como a chuva no telhado...”. É assim que Paulo Leminski, impiedosamente, define uma dimensão de nossa vida. Sempre foi fecundo o diálogo entre filosofia e literatura. Por vezes os textos literários chegam mais rápido, e sem desvios, a verdades que o filósofo demora a alcançar. No caso do Brasil, país em que as Universidades e um esboço de sistema de ensino somente se constituíram no século XX, é muito comum encontrarmos na literatura elaborações sobre o sentido da vida, a razão de ser das coisas e outras inquietações que são próprias da filosofia.

Seremos esquecidos. Sim, caro leitor. Você, eu, todos nós. Se estivéssemos para fechar um ano menos emblemático que o atual, poderíamos falar de outras coisas. Mas a dureza do nosso tempo exige que tratemos de aspectos nem sempre tão agradáveis, o que não é a primeira vez que ocorre nesta modesta coluna. A doença, a finitude, a morte. Tudo isso tem tomado nossas preocupações de forma muito intensa e eu diria que, apesar do desconforto de pensar nisso, é saudável que o façamos. Pelo menos de forma equilibrada.

O belíssimo filme de animação “Coco” (2017) tem como tema o par morte-memória. No Brasil ganhou o nome “Viva:  A vida é uma festa”. Se você não o assistiu, recomendo muito. É uma linda história que tem como referência a tradicional celebração do Dia dos Mortos no México, comemorado no dia 2 de novembro, assim como nosso Dia de Finados. Porém, diferentemente da tradição católica, na qual se enfatiza a dor da saudade, com a visita aos cemitérios marcada invariavelmente pela comoção, o “Día de los Muertos” é festejado com comida, música e outros elementos que lembrem os falecidos. Assim, as crianças desde cedo aprendem não só a valorizar o passado, mas também o fato de que um dia morrerão. Não cultivam a tristeza, mas a beleza de viver.

Por quanto tempo existiremos? A mensagem do filme é cristalina: o quanto durar nossa existência biológica e, depois da morte, os anos ou décadas nos quais alguém se recordar de nós. E depois? Cairá sobre nós o esquecimento. É certo que a régua de Leminski não vai se aplicar a ele, nem a tantos artistas e figuras que marcaram a história de uma região, de um país ou universalmente. Eles durarão mais. Quanto a nós, pobres mortais, grande massa de bilhões de pessoas que não deixarão grandes feitos, nem estátuas, nem obras artísticas relevantes, será bem diferente. Nossa duração pós-morte será garantida apenas pelos que de nós se lembrarem. E quando o último desses morrer será a derradeira gota de chuva no telhado...

Não vejo problema nisso. Aliás, reconhecer o jogo da vida é uma atitude que nos faz mais livres, mais cientes do que de fato somos. Pó de estrelas. A dificuldade está em ajustar desejo e possibilidade. Gostaríamos de ser eternos. A noção de eternidade é bonita. Entre outras fontes, chegou-nos pela herança judaico-cristã. Pode-se dizer que ela consiste no entendimento de que o universo, que é passageiro, está assentado sobre bases que não passam. É uma ideia tranquilizadora, uma vez que a vida biológica de cada um de nós seria apenas uma cena de um filme maior. Nesse caso, um filme que não tem fim.

Será assim? Não cabe à filosofia normatizar a crença de ninguém. Ela trata da vida concreta e suas nuanças, não do sobrenatural. Mas é seu papel fazer a crítica das ideias religiosas, sobretudo quando estas se mostram incompatíveis com princípios humanitários fundamentais. O que sugiro aqui é algo bem menos ambicioso: o problema de se internalizar o eterno no transitório. Explico-me. Por estarmos habituados à noção de eternidade, é comum que a projetemos naquilo é passageiro. É assim que formamos ideias simples, mas muito eficientes como a “vocação profissional”, o “lugar em que viverei até o fim”, a “pessoa da minha vida”. Sem falar no “felizes para sempre” dos contos, filmes e novelas. Como se houvesse a garantia de que algo jamais acabará. Ocorre que esta expectativa não bate com a realidade. Em nossa jornada vamos experimentando inúmeros fechamentos de ciclo, um após outro; o que ontem parecia eterno hoje é página virada. É o ofício do tempo.

No campo específico das relações afetivas, que são ora nosso abrigo em meio à tempestade, ora a própria tempestade, a vivência da transitoriedade é um imenso desafio. Novamente é a literatura que capta isso de forma brilhante. O poema “Soneto da fidelidade” de Vinícius de Moraes é muito usado no início dos relacionamentos como promessa de amor. E ele é. Mas deveria ser tomado também em sua dimensão menos simpática: se os primeiros versos são sincera expressão de um sentimento que se pretende infinito, os últimos demonstram a consciência de que tudo que está sob o sol é passageiro, “posto que é chama”. Não há nada que lembre eternidade na expressão “...que seja infinito enquanto dure”. Há, sim o desejo de estar com aquela pessoa “em cada vão momento”, o tempo que for possível.

Não conheço muito dos ritos religiosos de casamento. O que sei é que no catolicismo há o momento em que o casal faz as juras de amor. Eis aí uma boa proposta a ser encaminhada ao Papa para se atualizar o rito do casamento: que ele tenha como referência o poema do Vinícius.


José Carlos Freire

Professor na UFVJM, Campus Mucuri, Teófilo Otoni

Fonte: Publicado em 12 de novembro de 2020 no Jornal Diário Tribuna no link: https://diariotribuna.com.br/?p=5793

domingo, 1 de novembro de 2020

Os limites

Na minha casa havia um cata-vento. Aliás, eram dois: o primeiro eu mesmo fiz com lata de óleo de cozinha. Era pequeno. Eu o coloquei no canto da varanda. Seu eixo era de refil de caneta e funcionava bem. Criança, a gente costuma sobrevalorizar a própria capacidade. Pensando bem, ele não era tão bom assim.

Meu pai construiu o segundo cata-vento. Ele percebeu que eu me havia interessado pelo assunto. Pegou uma hélice de motor usado e a adaptou a um eixo de rolimã. Ficou bem feito, como todas as suas invenções. Foi colocado no poste em frente à casa. Por ser mais alto, ele rodava mais. Com o passar dos dias só ficou o grande: meu pequeno cata-vento enferrujou. Reconheci minha limitação.

Eu gostava de ficar olhando o cata-vento. Ora lento, ora rápido e imponente, seu movimento me fazia viajar pelas regiões de mim mesmo. Depois nos mudamos para a cidade e do cata-vento só ficou a lembrança. Mas ainda os admiro. Cata-ventos são precisos: cumprem aquilo para o qual foram feitos. Os gregos antigos chamavam isso de "excelência": o ato de algo ou alguém realizar com maior precisão possível aquilo que lhe é próprio. Pois bem, a excelência dos cata-ventos seria esta: acompanhar o vento. Não se preocupam em rodar ou em parar. Apenas rodam ou param.

Tenho vontade de aprender com eles tal ciência: fazer aquilo que me é próprio. Mas o que seria? Para falar a verdade ainda não sei. Até porque esse referencial clássico segundo o qual tudo e todos têm seu papel definido no universo já não cola mais. Hoje, com base em outras visões, sabemos que nossa existência é construída a cada dia. Estamos sempre mudando. O fato é que, pelo menos, já sei de várias coisas para as quais não “fui feito”. É um bom começo.

Nietzsche tinha uma formulação interessante para um bom projeto de vida: tornar-se o que se é. Novamente, não se trata de encontrar uma essência preestabelecida, como se cada pessoa nascesse com um roteiro, devendo apenas descobri-lo. O que o filósofo propunha estava mais próximo da ideia de autenticidade. Ajustar as ações, os afetos e as ideias àquilo que nos configura em nossa trajetória pessoal e não o contrário: praticar ações, cultivar afetos e ideias que nos são impostos ou que nos tornem estranhos a nós mesmos. Numa palavra: uma vida autoral.

No célebre romance Dom Quixote há algo interessante sobre isso. Miguel de Cervantes nos leva a acompanhar o fidalgo mudado em cavaleiro, tendo ao seu lado um lavrador que se transforma em escudeiro. As aventuras de Dom Quixote e Sancho Pança permitem as mais diversas possibilidades de reflexão. Gostaria de apontar uma: a ideia de limite. De modo geral, o romance todo é uma grande discussão sobre limites. Desde a história em si – uma vez que o protagonista deseja refundar um modelo moral e social que historicamente já não cabe – até uma dimensão mais profunda: o limite dos sonhos imposto pela dura realidade. Por isso a engenhosa construção do autor nos leva a um sentimento duplo: rimos de Quixote e, ao mesmo tempo, torcemos por ele.

Mas há uma cena especial que merece destaque. Quando Dom Quixote e Sancho Pança se encontram com um duque e uma duquesa, na segunda metade do romance. Sabendo das loucuras do nobre cavaleiro e de sua promessa feita a Sancho de lhe dar o governo de uma ilha, o casal, ávido por fazer troça dos visitantes, inventa um enredo enganoso, possibilitando que o escudeiro seja nomeado governador da ilha Barataria. É o momento em que Sancho ganha maior destaque na saga. Parte dos moradores conhece a farsa, parte não. Ocorre que o “governo”, que dura apenas dez dias, surpreende até aqueles que sabem do teatro. Sancho se mostra capaz de unir o saber popular de simples lavrador ao ofício de governar um povo. Mas o aumento das dificuldades e o estouro de uma guerra – também falsa – levam Sancho a um duro balanço de sua jornada até ali. Ele, que desde o dia em que decidiu seguir os passos de Dom Quixote sonhava em conquistar o poder de uma ilha, agora admite que isto está além de suas condições: “Não nasci para ser governador, nem para defender ilhas ou cidades contra inimigos que as queiram assaltar. Melhor entendo eu de arar e cavar, podar e plantar as vinhas, que de fazer leis ou defender províncias e reinos”.

A aparente derrota pode ser vista, na verdade, como grande conquista. Aliás, duplamente: Sancho provou para si e para os demais grande habilidade em diversos momentos do governo; em segundo lugar, mostrou-se sábio por reconhecer seus limites. Seu retorno à condição de escudeiro – que se articula diretamente com a volta posterior da dupla para casa – pode ser visto como lição de reconhecimento da própria condição. Sancho tornou-se o que era.

O leitor mais jovem poderá achar essa interpretação fatalista. Eu creio que não. Porque não se trata de retorno ao mesmo ponto: houve uma jornada, uma viagem, um aprendizado. Se Sancho não conservou o governo da ilha, ao menos agora governa melhor a si mesmo. O que, em termos filosóficos, é muita coisa! Conhecer-se melhor, reconhecer os limites: um desafio para todos nós. Não se trata de abandonar os sonhos, os desejos, os projetos, mas de ajustá-los às condições reais. O nome disso não é fraqueza, mas sim sabedoria.

 José Carlos Freire

Professor na UFVJM, Campus do Mucuri - Teófilo Otoni

Fonte: Publicado em 30 de outubro de 2020 no Jornal Diário Tribuna no link: https://diariotribuna.com.br/?p=5498

 

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