“Um dia sobre nós também / vai cair o esquecimento / como a
chuva no telhado...”. É assim que Paulo Leminski, impiedosamente, define uma
dimensão de nossa vida. Sempre foi fecundo o diálogo entre filosofia e
literatura. Por vezes os textos literários chegam mais rápido, e sem desvios, a
verdades que o filósofo demora a alcançar. No caso do Brasil, país em que as
Universidades e um esboço de sistema de ensino somente se constituíram no
século XX, é muito comum encontrarmos na literatura elaborações sobre o sentido
da vida, a razão de ser das coisas e outras inquietações que são próprias da
filosofia.
Seremos esquecidos. Sim, caro leitor. Você, eu, todos nós. Se
estivéssemos para fechar um ano menos emblemático que o atual, poderíamos falar
de outras coisas. Mas a dureza do nosso tempo exige que tratemos de aspectos
nem sempre tão agradáveis, o que não é a primeira vez que ocorre nesta modesta
coluna. A doença, a finitude, a morte. Tudo isso tem tomado nossas preocupações
de forma muito intensa e eu diria que, apesar do desconforto de pensar nisso, é
saudável que o façamos. Pelo menos de forma equilibrada.
O belíssimo filme de animação “Coco” (2017) tem como tema o
par morte-memória. No Brasil ganhou o nome “Viva: A vida é uma festa”. Se você não o assistiu,
recomendo muito. É uma linda história que tem como referência a tradicional
celebração do Dia dos Mortos no México, comemorado no dia 2 de novembro, assim
como nosso Dia de Finados. Porém, diferentemente da tradição católica, na qual
se enfatiza a dor da saudade, com a visita aos cemitérios marcada
invariavelmente pela comoção, o “Día de los Muertos” é festejado com comida,
música e outros elementos que lembrem os falecidos. Assim, as crianças desde
cedo aprendem não só a valorizar o passado, mas também o fato de que um dia
morrerão. Não cultivam a tristeza, mas a beleza de viver.
Por quanto tempo existiremos? A mensagem do filme é
cristalina: o quanto durar nossa existência biológica e, depois da morte, os
anos ou décadas nos quais alguém se recordar de nós. E depois? Cairá sobre nós
o esquecimento. É certo que a régua de Leminski não vai se aplicar a ele, nem a
tantos artistas e figuras que marcaram a história de uma região, de um país ou
universalmente. Eles durarão mais. Quanto a nós, pobres mortais, grande massa
de bilhões de pessoas que não deixarão grandes feitos, nem estátuas, nem obras artísticas
relevantes, será bem diferente. Nossa duração pós-morte será garantida apenas pelos
que de nós se lembrarem. E quando o último desses morrer será a derradeira gota
de chuva no telhado...
Não vejo problema nisso. Aliás, reconhecer o jogo da vida é
uma atitude que nos faz mais livres, mais cientes do que de fato somos. Pó de
estrelas. A dificuldade está em ajustar desejo e possibilidade. Gostaríamos de
ser eternos. A noção de eternidade é bonita. Entre outras fontes, chegou-nos
pela herança judaico-cristã. Pode-se dizer que ela consiste no entendimento de
que o universo, que é passageiro, está assentado sobre bases que não passam. É
uma ideia tranquilizadora, uma vez que a vida biológica de cada um de nós seria
apenas uma cena de um filme maior. Nesse caso, um filme que não tem fim.
Será assim? Não cabe à filosofia normatizar a crença de
ninguém. Ela trata da vida concreta e suas nuanças, não do sobrenatural. Mas é
seu papel fazer a crítica das ideias religiosas, sobretudo quando estas se
mostram incompatíveis com princípios humanitários fundamentais. O que sugiro
aqui é algo bem menos ambicioso: o problema de se internalizar o eterno no
transitório. Explico-me. Por estarmos habituados à noção de eternidade, é comum
que a projetemos naquilo é passageiro. É assim que formamos ideias simples, mas
muito eficientes como a “vocação profissional”, o “lugar em que viverei até o
fim”, a “pessoa da minha vida”. Sem falar no “felizes para sempre” dos contos,
filmes e novelas. Como se houvesse a garantia de que algo jamais acabará. Ocorre
que esta expectativa não bate com a realidade. Em nossa jornada vamos
experimentando inúmeros fechamentos de ciclo, um após outro; o que ontem
parecia eterno hoje é página virada. É o ofício do tempo.
No campo específico das relações afetivas, que são ora nosso
abrigo em meio à tempestade, ora a própria tempestade, a vivência da
transitoriedade é um imenso desafio. Novamente é a literatura que capta isso de
forma brilhante. O poema “Soneto da fidelidade” de Vinícius de Moraes é muito
usado no início dos relacionamentos como promessa de amor. E ele é. Mas deveria
ser tomado também em sua dimensão menos simpática: se os primeiros versos são
sincera expressão de um sentimento que se pretende infinito, os últimos
demonstram a consciência de que tudo que está sob o sol é passageiro, “posto
que é chama”. Não há nada que lembre eternidade na expressão “...que seja
infinito enquanto dure”. Há, sim o desejo de estar com aquela pessoa “em cada
vão momento”, o tempo que for possível.
Não conheço muito dos ritos religiosos de casamento. O que
sei é que no catolicismo há o momento em que o casal faz as juras de amor. Eis
aí uma boa proposta a ser encaminhada ao Papa para se atualizar o rito do
casamento: que ele tenha como referência o poema do Vinícius.
José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus Mucuri, Teófilo Otoni
Fonte:
Publicado em 12 de novembro de 2020 no Jornal Diário Tribuna no link: https://diariotribuna.com.br/?p=5793