sábado, 17 de outubro de 2020

A felicidade II

Na crônica anterior propus uma reflexão sobre três modelos de felicidade. Gostaria de falar de outros três, lançando mão do mesmo esquema de divisão histórica – o mundo antigo, o medieval e o moderno. Desta vez, porém, farei o caminho inverso: partirei de nossos tempos, seguindo até a antiguidade.

Primeiramente, um modelo de múltiplas faces ao qual podemos chamar de ideal de vida comunitária alternativa. Desenvolveu-se, sobretudo, nos últimos sessenta anos. Há uma variedade enorme de manifestações que caberiam nesse referencial, desde os movimentos de contracultura nos anos 1970, passando pelas comunidades de cunho esotérico, até as atuais expressões mais elaboradas como as agrovilas e ecovilas, muitas vezes oriundas de movimentos sociais.

O que seria comum a essas modalidades? Independentemente do número de pessoas, famílias ou grupos que as compõem, as comunidades carregam essa marca essencial: são alternativas. A quê?  Sobretudo ao modo de vida capitalista, com sua lógica industrial, de competição a qualquer custo e de destruição do meio ambiente. Dessa resistência decorrem aspectos práticos como a produção coletiva, o consumo de alimentos orgânicos, a educação das crianças a partir de outros referenciais etc. Tentativas de forjar uma vida saudável e solidária, mesmo dentro de uma ordem social mais ampla que aponta para outra direção.

Quem se aproxima de tais comunidades ou simplesmente ouve falar sobre elas costuma ter uma reação mais ou menos esperada: são utópicas! Estou de acordo. A vida alternativa é um desafio gigantesco. Mas convidaria o leitor a, pelo menos, reconsiderar sua visão sobre essas iniciativas. Elas nos dizem algo muito sério: será que o modo de vida “normal”, a que a maioria se ajusta, de fato funciona? Para onde rumamos com os preceitos que regem nossa vida social? Talvez seja o caso de ouvir com mais atenção a provocação que nos vem da música “Balada do Louco”, de Arnaldo Baptista e Rita Lee: “Dizem que sou louco por pensar assim./ Se eu sou muito louco por eu ser feliz,/ mais louco é quem me diz e não é feliz”.

Regredindo no tempo, poderíamos nos deter em diversas manifestações ao longo da chamada Idade Média que, de algum modo, destoaram da oficialidade cristã. Enquanto esta se orientava pelo medo do pecado e pela ideia de purificação da alma, já que a felicidade somente se encontraria numa vida futura, muitos grupos se configuraram de outros modos. É o caso dos mendicantes, cujas expressões mais conhecidas são os seguidores de Domingos Gusmão e Francisco de Assis – para os católicos, “São Domingos” e “São Francisco”.

Tais grupos não estavam isentos de contradições e nem da marca institucional romana que era dominante. Mas havia algo mais interessante. É o caso de Francisco de Assis que recomendava práticas como o desapego de riquezas e honrarias; o cultivo da fraternidade; a contemplação da natureza como co-irmã do humano; e aquilo que, sem dúvida, era o mais profético: num tempo de pessoas sisudas e pregações ameaçadoras, Francisco falava da alegria de viver. É curioso que hoje, oito séculos depois, os valores defendidos por ele se mostrem ainda relevantes. Mais que o patrono da ecologia, Francisco de Assis é uma espécie de arquétipo do sábio, similar a outros místicos do ocidente e do oriente.

Por fim, recuando ainda mais, temos as escolas de vida que floresceram na Grécia antiga e posteriormente por toda a Roma. São chamados de “escolas” menos pelo conteúdo e mais pela forma de vida que procuram ensinar. Destaco uma entre elas que me parece muito atual: os epicuristas. O Jardim de Epicuro era o espaço educativo em que o filósofo divulgava ideias como o cultivo das coisas simples, a valorização da amizade, a consideração do sofrimento e da dor como inerentes à vida. Para ele todos deveriam se dedicar à filosofia, porque ninguém é demasiado jovem ou velho para buscar a saúde do espírito. Aí está um preceito valioso: o caráter terapêutico do conhecimento. Não essa ladainha que nos é imposta o tempo todo de aprender mais para competir melhor. Não. Para Epicuro, buscar o conhecimento é almejar a sabedoria, o que implica em um movimento duplo: admirar-se com as coisas simples e belas e, simultaneamente, desassombrar-se do medo do futuro. Além disso, o cultivo da sabedoria é uma maneira de superar ou suportar a hipocrisia das convenções sociais. Em síntese: uma maior tranquilidade da alma; hoje diríamos, quem sabe, um maior equilíbrio interior.

Para o epicurismo a vida pode se tornar prazerosa. Não por ser um mar de rosas e perfeita. Ela continua difícil e complicada, mas nossa postura diante dela se modifica: passamos a experimentar os momentos bons com mais profundidade e os momentos difíceis com maior serenidade. Assim, nosso ânimo fica predisposto a aproveitar os períodos de prosperidade, alegria e saúde; da mesma maneira como nos preparamos, sem ansiedade, para as fases de dificuldade, tristeza e doença. Isso tudo cercado de boas amizades e meditação.

São três referenciais de busca da felicidade. Nenhum deles, certamente, capaz de nos dar todas as respostas. Mas pelo menos nos oferecem caminhos. O leitor certamente terá encontrado pontos de contato entre as comunidades contemporâneas, as medievais e as antigas. Talvez pelo fato de que, apesar da força do modo de vida que impera em uma época, habita em nós um anseio por autenticidade, por profundidade. Talvez haja, nas brechas do cotidiano e nas “falhas do sistema”, trilhas possíveis de uma existência alternativa.

 

José Carlos Freire

Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni

 

Fonte: Publicado em 16 de outubro de 2020 no Jornal Tribuna Diário no link: https://diariotribuna.com.br/?p=5053  

sábado, 3 de outubro de 2020

A felicidade

As crianças adoram contar seus sonhos. E sua narrativa é rica em detalhes. Dá pra sentir sabores, ver as cores, ouvir os sons! Na minha casa isso é uma diversão. Outro dia Júlia veio com um sonho bacana. Era noite e por algum motivo ela só teria mais um dia de vida - os sonhos começam do nada e geralmente não vêm com explicações.  Então, como naquela antiga brincadeira do “o que você faria se tivesse apenas um dia?”, ela não titubeou: decidiu que queria brincar e tomar sorvete. Começou pelos jogos de tabuleiro em família, entre uma colherada e outra. Se não tivesse acordado certamente brincaria de outras coisas com amigas e pessoas queridas.

Ficamos papeando depois que ela contou o sonho. E eu pensei na felicidade, essa prima-irmã da sabedoria. Um indicativo de que essas duas foram alcançadas certamente seria esse: quando alguém, lançando mão da brincadeira do “o que você faria...” concluísse que suas vinte e quatro horas restantes seriam tais como as anteriores, ou seja, não precisaria correr atrás de nada que faltasse. Evidente que este é um propósito muito difícil de se alcançar. Sempre temos muita coisa que ainda queremos viver ou fazer.

Recordo-me do maravilhoso poema “Hospedaria” de Mário Quintana: “Esta vida é uma estranha hospedaria,/ de onde se parte quase sempre às tontas,/ pois nunca as nossas malas estão prontas/ e a nossa conta nunca está em dia." Que definição sublime! Exatamente isso: a felicidade talvez seja aquela condição em que as malas já estão prontas e as contas, em dia. Em outras palavras: não há mais amarras, não há coisas pendentes, não há âncoras. O barco pode navegar suavemente. Fôssemos sensatos, viveríamos cada dia como o último. Mas sabemos que não basta nossa vontade. Há inúmeros fatores que interferem nesse jogo. Entre eles, dois pequenos detalhes: trabalho e sobrevivência.

Mas vou me restringir à nossa experiência pessoal. A história da filosofia no Ocidente pode nos ajudar a pensar sobre ela. De modo sucinto, há três grandes referenciais de felicidade em torno dos quais inúmeros pensadores se debruçaram por séculos. Um primeiro é o de pertencimento a uma coletividade. Os gregos não inventaram isso, mas é certo que o cultivaram de um modo muito peculiar. No período áureo das chamadas cidades-Estado gregas, exaltava-se a participação nas decisões coletivas em locais como Esparta, Tebas e Atenas. Deixando de lado as contradições do mundo grego, podemos dizer que esse ideal ficou marcado em nosso arquétipo de vida feliz: situar-se em um projeto coletivo, contribuir para um fim social, fazer parte de uma ordem maior que nos integre.

Um segundo ideal é próprio da longa era cristã, que cobriu mais de um milênio de hegemonia do lado de cá do globo. O sentido de pertencimento também está ali, afinal, estamos falando de religião que é, via de regra, um agrupamento em torno de uma crença. Mas a contribuição mais importante do cristianismo para nossa civilização em termos de referencial de felicidade foi outra: a de preparação para uma vida futura. A ideia de salvação, nesse caso entendida como situação desejada após a morte, povoou fortemente o imaginário social. Não é o caso de refletir aqui sobre os problemas que isso trouxe – e são muitos, mas sim de fincar mais um pilar dos nossos modelos de felicidade: algo que está além, lá na frente, em um estágio futuro. Restaria, no presente, preparar-se para ele, criar suas condições de realização para quando chegar a hora.

O terceiro ideal desse esquema breve se encontra naquilo que é compreendido como modernidade, isto é, o período do avanço científico, da formação dos países como hoje os conhecemos, da aceleração da técnica, da noção de progresso. Mas é outra noção que nos interessa mais: a de autonomia do indivíduo. Todas as fichas foram apostadas na esperança de liberdade. Um sujeito livre e emancipado, sem a vigilância das instituições, sem o cerceamento das autoridades. Tal qual os dois anteriores, esse ideal mostrou inúmeras contradições. Mas o fato é que ele demarcou seu território: passou a compor também nosso arquétipo de felicidade.

Não se trata de indicar qual o melhor referencial, mas sim de compreender que os três nos atravessam o tempo todo. A depender da situação pessoal ou da conjuntura histórica um ou outro modelo de felicidade se impõe mais ou se articula com um segundo. Tal lógica, por vezes, nos dilacera ou nos deixa insatisfeitos: se pertencemos muito fortemente a algo, sentimos falta de liberdade; se nos tornamos muito autônomos e independentes, falta-nos a coletividade; se apostamos muito na preparação para a felicidade lá na frente, ficamos insatisfeitos por não experimentá-la minimamente agora; se investimos em um projeto de felicidade imediato, temos dúvida se o fazemos sozinhos ou em grupo. Enfim, a angústia segue. Tal estado de felicidade parece inatingível.

Não há resposta fácil para esse desafio. Mas há boas hipóteses. Uma delas está em buscar outros referenciais de felicidade que possam nos auxiliar. Isso, porém, fica para outra ocasião. Por ora, gostaria de encerrar retomando a provocação de Mário Quintana para me perguntar e para perguntar a você, caro leitor: como está sua “hospedaria”? Se você tiver um sonho igual ao de Júlia, em que precise escolher o que fazer na seu último dia, quais serão suas prioridades? O que você tem sido e feito é o que continuaria a ser e a fazer ou é provável que suas contas não estejam em dia?


José Carlos Freire

Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni.

Fonte: Publicado em 02 de outubro de 2020 no Jornal Tribuna Diário no link https://diariotribuna.com.br/?p=4657

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