Há dias tenho pensado em cartas. Sim, aquele gênero textual tão antigo. O leitor mais jovem pode achar engraçado ou mesmo um sinal de saudosismo. Diante de tantas formas mais rápidas e eficientes de transmissão de mensagens que sentido há em falar de cartas? Até mesmo o nosso velho carteiro já quase não as entrega mais!
O estranhamento é compreensível. Temos encurtado cada vez mais
a comunicação, as frases, as palavras. As coisas mudam. A pergunta do título
tem algo de retórico: não é possível voltar no tempo. Mas pergunto: a mudança
não teria feito desaparecer aspectos importantes que a carta continha? Não falo
da eficiência – os símbolos e imagens hoje utilizados estão aí para provar que
a mensagem passa, a informação chega. Falo do processo, do tempo que se gastava
em conceber uma carta, por vezes um rascunho até chegar à escrita, o que supunha
uma imersão afetiva. Depois, a ida ao correio, a espera pelo envio, a recepção
e a leitura. Tudo isso imaginado, porque não havia código de rastreamento. Ao
final, a expectativa da resposta ou do efeito causado pela mensagem. Eram dias
ou até semanas entre o início e o final do ciclo de uma simples carta. Ocorria
aquilo que Rubem Alves muito bem sintetizou: aquela folha de papel, ao ser
lida, acabava por unir mãos que estavam distantes. O capricho dos enamorados em
colocar uma pétala de flor ou então borrifar perfume no papel elevava essa união
a um plano mágico.
Além das cartas pessoais, vale a pena lembrar das muitas
modalidades de carta. Carta instrutiva, carta aberta, carta pública, carta à
redação de jornais. Os exemplos seriam inúmeros. Públicas ou pessoais, sempre
uma condição indispensável: reflexão, maturação do assunto pelo emissor,
escolha das palavras. A carta como exercício de diálogo. Chamem-me antiquado,
sem problemas, mas suspeito que o modo de comunicação rápido e urgente que hoje
cultivamos, a impaciência com os “textões”, a incapacidade patente de suportar
mais de três parágrafos, tudo isso indica um empobrecimento da arte
comunicativa. O leitor que chegou até aqui já é, por sinal, um sobrevivente dessa
onda avassaladora. É preciso compor uma comitiva de especialistas para dar
conta do tema. Comunicadores, estudiosos da tecnologia, linguistas,
pesquisadores do comportamento humano etc. Deixo aqui apenas indagações. E duas
experiências, uma antiga e uma recente.
Não faz muito tempo um grande amigo fez algo inusitado.
Escreveu uma carta à mão, foi ao correio, depositou e aguardou que o ciclo se
realizasse, tal como antigamente. Dispondo de todos os recursos tecnológicos
modernos, achou por bem que a mensagem deveria ser enviada por carta.
Acompanhei de longe o processo e fiquei pensando: talvez não seja o caso de atribuir
àquele velho gênero um valor elevado mas sim de constatar que os nossos
diversos meios de hoje nem sempre se mostram adequados. Como explicar a um
adolescente empapuçado de aplicativos que, ao receber uma mensagem, não precisa
responder imediatamente, podendo deixar para fazê-lo depois, com tempo para
meditar e sondar os próprios sentimentos e aí saber o que deseja de fato dizer?
Como lhe mostrar que a vida não se mede em números de caracteres e que – sim! –
muitas vezes precisamos falar muito para que, carreando palavras, nós mesmos
nos deparemos o com o que de fato queríamos dizer e no início não sabíamos?
A segunda experiência é de décadas passadas. Uma briga por
coisas do cotidiano havia distanciado meu pai e seu irmão mais velho. Todos
percebemos a amargura que aquela situação causava a ambos. Após alguns dias,
meu pai resolveu escrever uma carta. Das coisas que fiz na vida esta é uma das
que mais me dá orgulho: fui o responsável por levar uma mensagem que
reaproximou dois irmãos. Um embaixador da paz com menos de dez anos naquele
microcosmo rural. Aquela era uma situação em que a conversa pessoal estava
interditada. A carta foi a única forma de quebrar a inimizade.
Como pensar situações semelhantes no nosso cotidiano tendo
em vista os instrumentos dos quais hoje dispomos? Uma boa hipótese: damos novos
significados! O correio eletrônico, o popular e-mail, teria substituído a carta;
o áudio por aplicativo, o telefonema. Não sei se é tão simples assim. O pobre
e-mail já parece obsoleto; o áudio não pode passar de trinta, quarenta
segundos... A impressão que dá é que quanto mais ferramentas temos, menos
falamos.
Não abusarei da paciência do leitor que até aqui se manteve
firme. Encerro com a referência a Eduardo Galeano, grande escritor uruguaio
cujos textos se parecem cartas escritas a cada um de nós. No “Livro dos
Abraços”, em que recolhe pequenas histórias de partes distintas da América
Latina e mesmo de outras regiões, Galeano narra o que se passou com um velho
que morava num povoado nos arredores da cidade de Montevidéu. Criou-se a lenda
de que ele havia juntado um grande tesouro em casa ao longo da vida. Certa
feita, em uma de suas saídas para a cidade, a casa foi invadida por assaltantes
que, após vasculhar sem sucesso os cômodos, só encontraram um pequeno baú de
madeira, trancado a cadeado. Levaram-no e quando puderam finalmente abri-lo se
depararam com o conteúdo: estava cheio de cartas. O tesouro eram as cartas de
amor que o velhinho havia recebido ao longo da vida...
Professor na
UFVJM, campus de Teófilo Otoni.
Fonte: Publicado em 04 de agosto de 2020 no Jornal Tribuna Diário no link: https://diariotribuna.com.br/?p=2836
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