As últimas quatro décadas foram alucinantes em termos de desenvolvimento tecnológico. Estaríamos, no dizer de muitos, na era da informação. Embora o avanço tecnológico possa inspirar uma ideia de salto para frente na civilização, é preciso cautela. A trama social é muito complexa. Entre tantos elementos que a compõem está o chamado senso comum, essa teia de ideias e concepções gerais que vamos construindo nas relações cotidianas. Ele é atravessado por interesses, preconceitos, juízos de valor, assim como por elaborações criativas e construções espontâneas. Tudo isso somado, forma uma determinada interpretação da vida e de seus fenômenos. Numa palavra, no senso comum impera a força da opinião. Como é sabido, uma opinião pode ser acertada ou não. Precisa ser verificada com maior rigor. É onde entra um outro modo de interpretação da realidade: a ciência.
Para encurtar a
conversa: enquanto a opinião é livre e descompromissada, a ciência persegue a
verdade com rigor e, para isso, traça um plano e uma meta. Ao alcançá-la,
verifica se o plano foi bem sucedido ou não e por quais razões. Embora pareça
complicada essa conversa, na realidade não é. Foi graças a tipos variados de
“ciência” que construímos ferramentas, desenvolvemos a agricultura,
confeccionamos artefatos etc. Quando dominamos algum processo, podemos testá-lo,
aperfeiçoá-lo e reproduzi-lo. Se permanecemos no campo da mera opinião, ficamos
ao sabor da sorte e do acaso.
O ponto mais alto
dessa história poderia ser situado, sem maiores detalhes, há 500 anos. É o
contexto em que se consolida o método científico moderno. Graças a ele, falando
de modo genérico, conquistamos maiores condições de conforto de vida e,
simultaneamente, superamos problemas que nos prejudicavam. Para ficar num
recorte simples, o da saúde, é inegável que hoje temos maior controle sobre
elementos que a prejudicam e também sobre outros que a beneficiam. A medicina
moderna é um belo exemplo.
Dito desse modo,
parecerá ao leitor que tudo foi um mar de rosas. E seu estranhamento é acertado.
Aliás, quem se situa no campo da filosofia é, por princípio, crítico da
ciência, porque sabe que ela não é neutra: está condicionada por fatores
econômicos, políticos e sociais. Pode mesmo ser usada para prejuízo das pessoas
ou de grupos sociais inteiros como a história mostra. Além disso, um acento
exagerado na ciência – o chamado cientificismo – pode deixar em segundo plano
ou mesmo ignorar elementos constitutivos da vida como a intuição, a
sensibilidade e sobretudo a sabedoria ancestral dos povos que, paralelamente ao
método científico, vem ao longo dos séculos constituindo também formas
autênticas de saber.
Então não se trata
de uma apologia cega. Mas o leitor viu bem no título: defesa da ciência. Por
que? A razão é simples: porque o momento exige. A chamada era da informação não
tem filtro, ou seja, da mesma maneira que possibilita a propagação de conhecimento
seguro também dá espaço a opiniões sem fundamento algum, a não ser a convicção
de quem as lança de forma inconsequente.
Em termos de saúde
o que temos visto é um festival de horrores. Quinhentos anos de tradição de
pesquisa e controle de medicamentos, vacinas e procedimentos, entre outras
coisas, são colocados em dúvida por qualquer um que, acreditando ser dono da
verdade, impõe a sua opinião como a verdadeira. Em tal situação é preciso
afirmar de modo contundente: com todos os limites e contradições, o método
científico ainda é o que temos de mais apropriado para discutir saúde pública.
Aliás, um parêntese: é sobretudo pela finalidade social da ciência que se
defende a manutenção das Universidades Públicas, centros de pesquisa e produção
científicas. Se elas forem privatizadas, sua finalidade deixará de ser pública.
Simples assim.
Volto ao ponto.
Não, caro leitor. Aquele áudio de whatsapp, aquele “meme”, aquele vídeo de um
suposto gênio que você e eu recebemos não pode ter o mesmo grau de validade que
a pesquisa feita por um profissional que passa anos estudando, submete-se a
avaliadores, respeita os procedimentos e somente depois publica os resultados
em veículos apropriados. O que chega a você e a mim, nessa enxurrada de
informações, é, com raras exceções, mera opinião, muitas vezes descaradamente
falsa. Verifique a fonte, questione o conteúdo, analise sites de reconhecimento
científico oficial. Pense bem. Faça um bem a si e à sociedade: não seja transmissor
de informações que não sejam confiáveis.
Na base da tradição
filosófico-científica ocidental está, entre outros pilares, a figura do grego Sócrates,
para quem a sabedoria não consiste em posse da verdade, mas sim em reconhecer a
própria ignorância e, por isso, lutar constantemente para superar as falsas
opiniões. A ciência é uma tentativa permanente de busca do conhecimento. Não é
um dogma. Por isso a necessidade de tempo, de teste, de verificação, de
correção das falhas. Com tudo isso, ainda é o caminho para a solução de
problemas. No que toca a saúde, um tema tão fundamental em nossos dias, não
troquemos a ciência pela opinião de quem se julgue dono da verdade. Sobre
ciência, ouçamos cientistas.
Uma posição social,
um cargo político, uma função religiosa não conferem a ninguém o domínio da
verdade sobre a ciência e muito menos sobre a saúde. A propósito, foram estas
figuras que se indispuseram contra Sócrates na antiga Atenas. O que elas temiam?
Aquele velho filósofo? Não. Temiam que as pessoas, ao ouvirem Sócrates, superassem
o nível da mera opinião. Para manter seu prestígio social e o poder político,
tais lideranças necessitavam que reflexão crítica, base da ciência, fosse
combatida.
José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni.
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