Na crônica anterior propus uma reflexão sobre três modelos de felicidade. Gostaria de falar de outros três, lançando mão do mesmo esquema de divisão histórica – o mundo antigo, o medieval e o moderno. Desta vez, porém, farei o caminho inverso: partirei de nossos tempos, seguindo até a antiguidade.
Primeiramente, um modelo de
múltiplas faces ao qual podemos chamar de ideal de vida comunitária
alternativa. Desenvolveu-se, sobretudo, nos últimos sessenta anos. Há uma
variedade enorme de manifestações que caberiam nesse referencial, desde os
movimentos de contracultura nos anos 1970, passando pelas comunidades de cunho esotérico,
até as atuais expressões mais elaboradas como as agrovilas e ecovilas, muitas
vezes oriundas de movimentos sociais.
O que seria comum a essas
modalidades? Independentemente do número de pessoas, famílias ou grupos que as
compõem, as comunidades carregam essa marca essencial: são alternativas. A quê? Sobretudo ao modo de vida capitalista, com
sua lógica industrial, de competição a qualquer custo e de destruição do meio
ambiente. Dessa resistência decorrem aspectos práticos como a produção
coletiva, o consumo de alimentos orgânicos, a educação das crianças a partir de
outros referenciais etc. Tentativas de forjar uma vida saudável e solidária, mesmo
dentro de uma ordem social mais ampla que aponta para outra direção.
Quem se aproxima de tais comunidades
ou simplesmente ouve falar sobre elas costuma ter uma reação mais ou menos
esperada: são utópicas! Estou de acordo. A vida alternativa é um desafio
gigantesco. Mas convidaria o leitor a, pelo menos, reconsiderar sua visão sobre
essas iniciativas. Elas nos dizem algo muito sério: será que o modo de vida
“normal”, a que a maioria se ajusta, de fato funciona? Para onde rumamos com os
preceitos que regem nossa vida social? Talvez seja o caso de ouvir com mais
atenção a provocação que nos vem da música “Balada do Louco”, de Arnaldo
Baptista e Rita Lee: “Dizem que sou louco por pensar assim./ Se eu sou muito
louco por eu ser feliz,/ mais louco é quem me diz e não é feliz”.
Regredindo no tempo, poderíamos
nos deter em diversas manifestações ao longo da chamada Idade Média que, de
algum modo, destoaram da oficialidade cristã. Enquanto esta se orientava pelo
medo do pecado e pela ideia de purificação da alma, já que a felicidade somente
se encontraria numa vida futura, muitos grupos se configuraram de outros modos.
É o caso dos mendicantes, cujas expressões mais conhecidas são os seguidores de
Domingos Gusmão e Francisco de Assis – para os católicos, “São Domingos” e “São
Francisco”.
Tais grupos não estavam isentos
de contradições e nem da marca institucional romana que era dominante. Mas havia
algo mais interessante. É o caso de Francisco de Assis que recomendava práticas
como o desapego de riquezas e honrarias; o cultivo da fraternidade; a
contemplação da natureza como co-irmã do humano; e aquilo que, sem dúvida, era
o mais profético: num tempo de pessoas sisudas e pregações ameaçadoras,
Francisco falava da alegria de viver. É curioso que hoje, oito séculos depois,
os valores defendidos por ele se mostrem ainda relevantes. Mais que o patrono
da ecologia, Francisco de Assis é uma espécie de arquétipo do sábio, similar a
outros místicos do ocidente e do oriente.
Por fim, recuando ainda mais, temos
as escolas de vida que floresceram na Grécia antiga e posteriormente por toda a
Roma. São chamados de “escolas” menos pelo conteúdo e mais pela forma de vida
que procuram ensinar. Destaco uma entre elas que me parece muito atual: os
epicuristas. O Jardim de Epicuro era o espaço educativo em que o filósofo
divulgava ideias como o cultivo das coisas simples, a valorização da amizade, a
consideração do sofrimento e da dor como inerentes à vida. Para ele todos
deveriam se dedicar à filosofia, porque ninguém é demasiado jovem ou velho para
buscar a saúde do espírito. Aí está um preceito valioso: o caráter terapêutico
do conhecimento. Não essa ladainha que nos é imposta o tempo todo de aprender
mais para competir melhor. Não. Para Epicuro, buscar o conhecimento é almejar a
sabedoria, o que implica em um movimento duplo: admirar-se com as coisas
simples e belas e, simultaneamente, desassombrar-se do medo do futuro. Além
disso, o cultivo da sabedoria é uma maneira de superar ou suportar a hipocrisia
das convenções sociais. Em síntese: uma maior tranquilidade da alma; hoje
diríamos, quem sabe, um maior equilíbrio interior.
Para o epicurismo a vida pode se
tornar prazerosa. Não por ser um mar de rosas e perfeita. Ela continua difícil
e complicada, mas nossa postura diante dela se modifica: passamos a
experimentar os momentos bons com mais profundidade e os momentos difíceis com
maior serenidade. Assim, nosso ânimo fica predisposto a aproveitar os períodos
de prosperidade, alegria e saúde; da mesma maneira como nos preparamos, sem
ansiedade, para as fases de dificuldade, tristeza e doença. Isso tudo cercado
de boas amizades e meditação.
São três referenciais de busca da
felicidade. Nenhum deles, certamente, capaz de nos dar todas as respostas. Mas
pelo menos nos oferecem caminhos. O leitor certamente terá encontrado pontos de
contato entre as comunidades contemporâneas, as medievais e as antigas. Talvez
pelo fato de que, apesar da força do modo de vida que impera em uma época, habita
em nós um anseio por autenticidade, por profundidade. Talvez haja, nas brechas
do cotidiano e nas “falhas do sistema”, trilhas possíveis de uma existência
alternativa.
José Carlos Freire
Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni
Fonte: Publicado em 16 de outubro de 2020 no Jornal Tribuna Diário no link: https://diariotribuna.com.br/?p=5053
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